Até o começo do século, o eBay dominava o mercado de vendas de produtos entre pessoas físicas na China, onde chegou a ter 80% de share.

Mas aí surgiu Jack Ma. 

O fundador do Alibaba criou a Taobao em 2003 para concorrer com a gigante americana. Ma entrou no mercado zerando as taxas dos vendedores – algo que muitos à época acharam “uma loucura”. 

Mas a loucura, como escreveu Shakespeare, tinha método.

Começava ali o império do bilionário chinês, e o fim do eBay na China; a companhia deixou de operar no país três anos depois. 

A tática do Taobao é a mesma que passou a ser adotada pelo Rappi e a 99Food nas últimas semanas, e deve ser copiada também pela Meituan – a outra gigante chinesa que acaba de anunciar sua entrada no Brasil. 

Dois anos depois do CADE proibir o iFood de fazer contratos de exclusividade com restaurantes nas grandes cidades, o Rappi e a 99Food estão anunciando investimentos bilionários e zerando as taxas de seus restaurantes pelos próximos anos para chacoalhar o iFood, que domina mais de 80% do delivery de restaurantes no País.

O Rappi disse que vai investir R$ 1,4 bilhão na operação da companhia até 2028 – 40% na vertical de restaurantes. Além disso, disse que vai zerar as taxas dos restaurantes – a principal fonte de receita dos apps e que pode chegar a 30% em alguns casos – pelos próximos três anos.Felipe Criniti ok

O CEO Felipe Criniti confirma que a estratégia da Rappi foi totalmente inspirada no Taobao e que vai ser um motor de crescimento de seus outros negócios, como o serviço de entregas rápidas e o seu clube de assinatura. 

Já a 99 anunciou a volta de sua plataforma de restaurantes, a 99Food, dois anos depois de ter descontinuado a vertical por não ter conseguido concorrer com o iFood.

A 99Food vai dar dois anos de taxa zero para os restaurantes e investir R$ 400 milhões este ano, além de aportar mais R$ 600 milhões em seus outros negócios.

Bruno Rossini, o diretor sênior da 99, disse que, após a decisão do CADE, não só dá para passar a concorrer com o iFood como será possível “revolucionar o mercado”.

“Sem rodeios: nós voltamos porque as condições de mercado mudaram. E quando você conversa com restaurantes e entregadores, todos estão implorando por alternativas,” disse Rossini.

Ele disse que não há uma data exata para a volta da 99Food.

Hoje a relação do iFood com os entregadores está longe de ser pacífica. Em abril houve mais uma greve – chamada de “breque dos apps” – que forçou o iFood a realizar um reajuste de 15% para os motoqueiros e de 7% para os ciclistas que entregam pela plataforma. (Tanto 99 quanto o Rappi prometeram remunerações aos entregadores melhores que as do iFood.)

A volta da 99Food, segundo Rossini, também consolida o conceito de superapp da companhia. (A 99 é controlada pela chinesa DiDi Chuxing). 

O executivo disse que a 99 pode ganhar dinheiro em outros serviços e abdicar da receita com os restaurantes, até como uma forma de transformar o mercado. 

Bruno Rossini ok“Nosso objetivo é revolucionar, e ficamos bastante lisonjeados de ver outros competidores reagindo e imitando a 99. Queremos botar de cabeça para baixo a lógica do mercado,” disse Rossini. 

(Criniti, do Rappi, disse ao Brazil Journal que a proposta da sua empresa já estava sendo gestada antes do anúncio da 99 e que achou “estranho” a concorrente ter divulgado a sua estratégia antes.) 

Mas esse all-in do Rappi e da 99 contra o iFood é sustentável? Para muita gente no mercado, não.

“E quando chegar ao fim o período de dois ou três anos? O que vai acontecer?,” disse Igor Remígio, CEO do aiqfome, que atua em cidades menores.

Fundado em 2007, o aiqfome não é um player pequeno: somente no ano passado teve um GMV de R$ 1,3 bilhão e quer chegar a R$ 2 bilhões neste ano. Em 2020, foi comprado pelo Magalu. 

Segundo Igor, o aiqfome não pretende mudar sua estratégia de cobrar dos restaurantes, pois vê uma relação de “ganha-ganha”. 

O executivo disse que o aiqfome fixou uma taxa de 10% – “como se fosse a gorjeta do garçom” – que vai diminuindo de acordo com o aumento do faturamento. Hoje, segundo Igor, a média cobrada dos restaurantes da plataforma é de 9%. 

“Acho muito estranho não se cobrar o core. É como se uma pizzaria tentasse ganhar dinheiro com o refrigerante em vez da pizza,” disse. 

Para Alberto Serrentino, fundador da Varese Retail, uma consultoria especializada em varejo, o mercado de apps vai entrar numa fase de pressão econômica e guerra de preços – e que em algum momento precisará retornar para o ponto de equilíbrio.

Porém, os executivos da 99 e Rappi não acreditam numa guerra tão aberta – nem numa nova inundação de cupons de descontos. Segundo eles, haverá um barateamento das refeições entregues sem a taxa.

Criniti, da Rappi, disse que os contratos celebrados agora obrigam os restaurantes a adotar no delivery o mesmo preço praticado nos pontos físicos.

“O que acontece hoje é que os restaurantes já cobram até 30% a mais em seus pratos por causa das taxas abusivas,” disse ele. “E cobrar essa taxa de comissão praticamente torna o aplicativo sócio do negócio, só que sem colocar dinheiro na operação.” 

Diego Barreto, o CEO do iFood, disse ao Brazil Journal que a chegada dos novos players mostra que o setor de delivery no Brasil é competitivo – “com disputas entre canais como telefone, WhatsApp, aplicativos e, dentro deles, entre plataformas como o iFood e operações próprias dos restaurantes”.

Segundo Diego, o iFood não vai mudar sua forma de operar.

“O iFood vai seguir o caminho no qual acredita, que é continuar sendo um grande motor de geração de demanda para os restaurantes e de conveniência para os consumidores — o que, como consequência, gera renda para os entregadores,” disse.

Segundo Diego, hoje 25% das vendas intermediadas pelo iFood são feitas sem cobrança de comissão, mas a partir de uma assinatura mensal. Em especial, por meio do AnotAI, a solução de vendas por WhatsApp criada pelo iFood que, como o nome diz, usa inteligência artificial.Diego Barreto ok

“Quando se fala em ‘guerra de preço’, é importante qualificar: qual preço? Para o consumidor, isso pode significar cupons e subsídios — algo já visto diversas vezes,” disse. “Mas no médio e longo prazo, o que retém o usuário é a proposta de valor da plataforma, ou seja, o nível de serviço, a confiança e o relacionamento.”

Essa disputa ganhou mais um componente nos últimos dias: a chinesa Meituan – que faturou US$ 46,6 bilhões ano passado – anunciou que vai investir US$ 1 bilhão nos próximos cinco anos para “transformar” o setor no Brasil. O anúncio foi feito durante a visita do Presidente Lula à China.

A empresa deu mais detalhes sobre o seu plano de negócio nesta terça-feira: por meio da marca Keeta, a  Meituan disse que vai contratar 1.000 funcionários para apoiar o crescimento dos restaurantes “por meio de um conjunto completo de serviços, ferramentas de marketing e soluções operacionais”.

O mais provável é que o mercado mude bastante nos próximos anos. Mas é importante lembrar de um detalhe da guerra entre Jack Ma e eBay na China: logo depois da saída da gigante americana do país, o bilionário chinês começou a cobrar taxas dos seus usuários.