Foi num dia como hoje, um 17 de maio, que a delação do empresário Joesley Batista explodiu no início da noite no site de O Globo, consternando o País e mutilando para sempre a presidência de Michel Temer. 
 
Dois anos depois, o “Joesley Day” ainda deixa seqüelas.   
 
10169 6d651894 44b7 1bcb 0004 f7622f6f9584A delação do empresário (e a forma como a notícia veio a público) inviabilizou a reforma da Previdência, que àquela altura finalmente avançava no Congresso, e mergulhou o País numa nova onda de incerteza política que ele não merecia.  Agora, Temer é réu em diversos processos e há um novo xerife no saloon, mas uma nova versão da reforma ainda está sendo… debatida.
 
O Brasil é incapaz de transformar o limão em limonada, mas insiste em tentar o contrário.
 
Com senso comercial ímpar, a Editora Intrínseca está aproveitando esta data sombria para lançar “Why Not: como os irmãos Joesley e Wesley, da JBS, transformaram um açougue em Goiás na maior empresa de carnes do mundo, corromperam centenas de políticos e quase saíram impunes”, o livro-reportagem da jornalista Raquel Landim que conta a história da JBS — desde sua origem num modesto açougue em Anápolis até o status de maior empresa de proteína do mundo.
 
Why Not é o nome de um iate comprado por Joesley — e, segundo a autora, alude aos rumos que os irmãos estavam dispostos a trilhar.  “Por que não oferecer propina a políticos em troca de leis favoráveis à empresa? Por que não crescer contando com uma rede estatal de benefícios?” 
 
Num requinte de sarcasmo, a Intrínseca enviou o livro numa caixa de cartolina em formato de mala, evocando a cena em que um aliado de Temer recebeu da JBS uma mala com R$ 500 mil. 
 
Mas para além dos “faz-me rir” e das malas de dinheiro, este é um livro que nos faz apreciar e refletir sobre as contradições do capitalismo brasileiro.  A história da JBS não se resume à corrupção.  Os Batista vieram da roça e se mostraram empreendedores ousados, com um tino inegável para os negócios.  Transformaram uma empresa que faturava R$ 4,3 bi em 2006 (o ano antes do IPO) num império global que hoje fatura R$ 180 bi.  Infelizmente, a busca por atalhos mostrou uma falta de escrúpulos e uma ganância igualmente colossais, que contaminaram toda a narrativa.  Mas entender que estes dois lados coexistem é compreender que toda situação tem sua textura — algo fora de moda neste mundo de julgamentos sumários e gritaria.
 
Raquel — que começou no Valor, passou pelo Estadão e hoje é colunista da Folha — investiu dois anos no projeto e entrevistou mais de 100 pessoas para contar esse beef thriller.
 
No excerto abaixo, ela narra como o colunista Lauro Jardim obteve e lidou com a informação bombástica nos dias antes de detoná-la, e como o empresário João Roberto Marinho deu a palavra final.  No calor que cerca todas as coisas relacionadas ao Joesley Day, a versão do livro está longe de ser a única, mas é uma leitura fascinante sobre um capítulo traumático da vida nacional.
 
 
 
 
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Estoura a delação

Fazia dias que Lauro Jardim, colunista de O Globo, não dormia direito. Estava mais ansioso que o normal, o que atrapalhava seu sono. Era bem verdade que ele tinha uma inquietação permanente, característica que o tornava um dos jornalistas mais bem informados do país. Ávido por notícias, checava se havia mensagens novas em seu celular diversas vezes enquanto conversava com alguém. Dava vários “furos”, sempre publicados o mais rapidamente possível em seu blog do jornal.

Mas naquela que seria sua história de maior repercussão decidiu aguardar o desenrolar dos acontecimentos para colocar a notícia no ar na hora certa. Era justamente isso que lhe tirava o sono. Enquanto começava a escrever o texto que faria explodir uma das maiores crises políticas do Brasil pós-redemocratização, o jornalista ia se lembrando de como tivera conhecimento daquela trama. Cerca de duas semanas antes, nos últimos dias de abril de 2017, ele havia tomado um café em um discreto restaurante carioca, num fim de tarde, com uma pessoa que costumava lhe passar informações exclusivas. Lauro estava curioso desde que essa “fonte”, no linguajar das redações, mandara uma mensagem dando conta de que sabia de algo que abalaria o país. Ele imaginou algumas coisas fortes, mas não estava preparado para o que ouviria.

Já naquela primeira conversa, o interlocutor entregou todo o jogo. Joesley Batista, dono da JBS, estava negociando uma delação premiada. E deu detalhes: o empresário estivera no Palácio do Jaburu e gravara clandestinamente o presidente da República. Na conversa, Temer dera aval para que Joesley comprasse o silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha e do doleiro Lúcio Funaro, ambos presos. O presidente também indicara uma pessoa para receber propina em seu nome, seu ainda assessor Rodrigo da Rocha Loures.

A “fonte” contou também que havia outra gravação clandestina, e que nessa o senador Aécio Neves, do PSDB, pedia dinheiro a Joesley. Contudo, recusou-se a entregar uma cópia dos áudios, apesar da insistência do jornalista. Não fez nenhuma exigência quanto à data da publicação da reportagem, porém deu a entender que se a informação fosse divulgada antes da homologação da delação esta poderia ser anulada pelo ministro Edson Fachin, do STF. Lauro passou aquela noite praticamente em claro e, de madrugada, tomou a difícil decisão de só publicar sua matéria após a aceitação da delação pelo Supremo, mesmo correndo o risco de perder o “furo”. Ele não queria ser acusado de salvar o presidente Temer de uma provável denúncia ao melar as tratativas entre a PGR e os Batista. Além disso, receava colocar o grupo Globo, alvo de constantes ataques do PT e da oposição, numa situação delicada.

O colunista dividiu a informação apenas com o repórter que trabalhava em sua equipe, em Brasília, e mergulhou na apuração de mais detalhes sobre os episódios. Não comunicou nada à chefia do jornal até estourar a Operação Bullish, em 12 de maio de 2017, quando começaram a circular rumores de que Joesley cogitava fazer uma delação premiada para evitar ser preso. Lauro, então, chamou o editor Alan Gripp, substituto do diretor de redação, Ascânio Seleme, que estava de férias, e contou tudo o que sabia. Gripp queria publicar a história imediatamente. O jornalista, porém,convenceu-o de que seria preciso esperar a homologação da delação.

No fim de semana, Gripp tomou um susto e ligou para Lauro. A Folha de S.Paulo e o Estadão publicaram reportagens sobre uma eventual colaboração premiada dos Batista. Lauro leu os textos e tranquilizou o editor: as informações não estavam corretas, visto que se afirmava que a J&F teria contratado um advogado para negociar a delação e que as conversas estavam em estágio preliminar. Aquilo significava que só O Globo continuava com a exclusividade da notícia, pois, ao contrário do que dizia a concorrência, a delação não estava em estágio preliminar, estava quase pronta, e seque envolvia o advogado citado. Lauro achou melhor ligar para o celular do próprio Ascânio, que voltaria das férias na semana seguinte. Explicou a situação e prometeu que o texto estaria em sua mesa no fim da tarde da segunda-feira seguinte, 15 de maio de 2017.

Ascânio Seleme continuou sentado à mesa depois que terminou a reunião editorial que a cúpula do grupo Globo realizava todas as segundas-feiras, entre 11 da manhã e uma da tarde, no prédio da TV Globo, no Jardim Botânico, Zona Sul do Rio. Participavam João Roberto Marinho, vice-presidente do conselho de administração das Organizações Globo, e os diretores de redação dos principais veículos do grupo: os jornais O Globo e Extra, a revista Época, a TV Globo e o diário Valor Econômico. Nos encontros discutia-se a conjuntura política e econômica do país e alinhavam-se posições. Normalmente, quem tinha assunto importante a tratar com João Roberto esperava a reunião acabar para falar com ele. Era o que Ascânio fazia.

Quando o diretor de redação ficou a sós na sala com João Roberto, relatou a ele o que ouvira do colunista Lauro Jardim. Um dos mais poderosos empresários do país, o dono do grupo Globo não conseguia acreditar: como é que aquele tipo de coisa seguia acontecendo depois de tudo o que havia sido revelado pela Operação Lava-Jato?

— Esses caras continuam fazendo bobagem. Não tem como não publicar. Mas a gente não pode errar numa coisa dessas — disse João Roberto.

— Fique tranquilo. Não vai ter erro — respondeu Ascânio.

No fim da tarde, Lauro entregou o texto à chefia, embora ainda aguardasse a homologação da delação, que já fora assinada pelo STF na quinta-feira anterior, mas ele não sabia. Com receio de vazamento, decidira não ouvir o que os dois principais envolvidos, Temer e Joesley, teriam a dizer. Apesar desse cuidado, começou a circular na PGR a informação de que o jornal tinha apurado a história completa da delação dos Batista.

Na noite do dia seguinte, 16 de maio de 2017, terça-feira, Rodrigo Janot foi até a livraria Cultura do Shopping Center Iguatemi, em Brasília, prestigiar o lançamento do livro Em nome dos pais, no qual o autor, o jornalista Matheus Leitão, contava a perseguição sofrida por seus pais na juventude, os também jornalistas Marcelo Netto e Míriam Leitão, pela ditadura militar. Tão logo pisou na livraria, o procurador-geral da República recebeu uma ligação de seu chefe de gabinete, Eduardo Pelella.

Pelella contou a Janot que o jornalista Lauro Jardim soubera da colaboração premiada dos Batista e publicaria a notícia. Contou também que pedira ao colunista que aguardasse a operação que a PF estava preparando com base nas informações obtidas na delação (seria a Operação Patmos), mas Lauro não concordara. Janot desligou e chamou sua assessora de imprensa. Precisava imediatamente do número do celular de João Roberto Marinho. Minutos depois, com o número na mão, ligou ali mesmo da livraria para ele.

Janot explicou a ele que a divulgação da delação comprometeria uma operação de busca e apreensão de documentos solicitada à Justiça, pois, ao ler as notícias, os suspeitos naturalmente destruiriam qualquer prova em seu poder. O procurador-geral deu sua palavra de que informaria a João Roberto o dia da operação para que O Globo publicasse a matéria antes dos outros jornais, logo pela manhã, quando os policiais ainda estivessem chegando à casa dos investigados. Em sua opinião, o sigilo estaria preservado e o jornal não perderia o “furo”. João Roberto ficou de pensar e responder no dia seguinte e Janot foi para casa, mais aliviado.

Na quarta-feira pela manhã, dia 17 de maio, João Roberto consultou Ascânio sobre o pedido de Janot e o chefe de redação ponderou que a proposta do procurador-geral não era a melhor alternativa para o jornal. Assim que a PF estivesse na rua, ao amanhecer, todos os demais veículos teriam acesso à notícia, que se espalharia rapidamente. O Globo perderia a exclusividade, desperdiçando o trabalho dos repórteres e prejudicando seus leitores.

— Não. Eu quero dar esse “furo” — respondeu João Roberto, dando o aval que Ascânio esperava.

Logo em seguida, João Roberto pediu a seus assistentes que desmarcassem uma reunião que teria dois dias depois com o presidente Temer no Palácio do Planalto. Com a decisão que acabara de tomar, não haveria clima para o encontro.  Às seis da tarde daquela quarta-feira, Ascânio telefonou para Ali Kamel, diretor-geral de jornalismo e esportes da Rede Globo. Só ligou no fim da tarde porque queria reduzir o número de pessoas cientes da história ao mínimo possível por receio de vazamento. Quando Kamel atendeu, Ascânio ouviu um som de piano ao fundo. O diretor-geral de jornalismo estava no Shopping Leblon, prestigiando o lançamento do livro “101 atrações de TV que sintonizaram o Brasil”, escrito por sua esposa, a colunista de TV do jornal, Patrícia Kogut.

— Alô, Kamel. Você já está no lançamento [do livro?] — perguntou Ascânio.

— Oi, Ascânio. Estou.

— Acho melhor você voltar para a TV.

Após ouvir o relato do colega, Kamel retornou aos estúdios, a fim de coordenar a preparação de uma matéria especial sobre a delação da JBS para o Jornal Nacional, telejornal da emissora transmitido às oito e meia da noite.

Eram quase sete e meia quando Janot retornou a seu gabinete, na PGR, após uma reunião com o ministro Edson Fachin. Os dois acertaram deflagrar no dia seguinte, 18 de maio, a Operação Patmos, cujos principais alvos seriam o senador Aécio Neves e o deputado Rodrigo da Rocha Loures. Conforme prometido, Janot pediu novamente à sua assessora o número de João Roberto Marinho para informá-lo da data da operação. Logo depois, porém, Pelella e Sérgio Bruno entraram esbaforidos na sua sala.

— Chefe, chefe, já era! Está tudo no site do Globo!

Janot não podia acreditar. Ligou para João Roberto e passou uma descompostura no poderoso dono do jornal:

— Eu fico espantado com a sua falta de senso público. O senhor estragou a operação!

João Roberto respondeu que seu maior compromisso era com seus leitores e a liberdade de imprensa. A conversa não terminou em bons termos. Na redação, no Rio de Janeiro, o clima era de festa naquela quarta-feira à noite, 17 de maio de 2017. Lauro recebia os cumprimentos dos colegas enquanto seu celular tocava quase sem parar. De tanto estresse, tinha perdido quatro quilos naquela última semana, porque a ansiedade tirara também seu apetite. Enquanto a concorrência corria, atônita, atrás de informações, alguém estourou um espumante e taças foram distribuídas entre os repórteres. A equipe que produzia os vídeos do site do jornal chegou a fazer um making-of daquela noite, pensando em divulgá-lo quando Temer deixasse o governo — o que não aconteceria.