PORTO — O artista italiano Maurizio Cattelan, um enfant terrible do mundo das artes, trabalha há décadas para nos tirar do sério — com sucesso.
Ainda está fresca na memória de muitos, por exemplo, sua infame obra Comedian (2019): uma banana colada na parede com silvertape e leiloada por US$ 6 milhões em NYC no ano passado.
Outra de suas obras-primas, um vaso sanitário de ouro batizado de America (2016), acaba de ser arrematado por US$ 12 milhões.
Mas nem só de provocações baratas vive o artista, como deixa claro a retrospectiva Sussuro, em cartaz em Serralves até 11 de janeiro.
Nas 26 obras ali expostas, surgem reflexões mais profundas e o lado macabro da obra de Cattelan, que aposta na subversão de ícones do imaginário popular para tirar o público da zona de conforto.

Em troca, pelo menos nessa exposição, o artista também se expõe.
Grande parte das obras da mostra está sob o teto da Casa de Serralves, uma mansão Art Déco dos anos 30 com pé-direito alto, chão de taco e cômodos com farta luz solar entrando por enormes janelões.
Um espaço sublime, mas que não é exatamente uma tela em branco.
“Instalar uma exposição na Casa é um desafio e também uma oportunidade única de contextualizar o trabalho do artista de forma diferente,” Philippe Vergne, que fez a curadoria da mostra ao lado do italiano, disse ao Brazil Journal. “As obras de Cattelan abraçam a noção de teatralidade, então, de certa forma, performam na casa ao habitá-la como seres.”
Ao atravessar o hall de entrada, o visitante dá de cara com um salão amplo — que se estende verticalmente pelos dois andares do imóvel — e leva o primeiro golpe: Novecento (1997), um cavalo embalsamado com as pernas esticadas e o pescoço curvado para baixo, suspenso no teto como um candelabro.
O animal, normalmente retratado como um símbolo de força em monumentos e obras triunfais, dessa vez transmite cansaço e consternação, em uma possível referência de Cattelan às dores vivenciadas pelos italianos no século XX.
Os olhos não demoram a buscar um refúgio, mas os estímulos estão por todos os cantos.
Nas salas adjacentes, há uma avestruz taxidermizada com a cabeça “enterrada” no piso de madeira; uma versão mini da Capela Sistina, que quase humaniza a obra-prima de Michelangelo; e nove estátuas em mármore Carrara de cadáveres cobertos por lençóis, uma dualidade entre a nobreza do material e a banalização da vida humana.
Impressiona a versatilidade de técnicas e materiais presentes na obra de Cattelan, um filho da cidade de Pádua que não estudou arte formalmente e começou a carreira produzindo móveis em madeira.
Após passar por mais um cavalo embalsamado e subir ao segundo andar, o público é apresentado a outra temática recorrente no trabalho do artista: os autorretratos ou, nesse caso, ‘autoesculturas’.
Uma delas, de 2000, tem a mesma disposição corporal de Novecento, possivelmente um atestado de fragilidade de um artista diante de forças externas.
A mais impressionante, no entanto, é You (2021).
Ao entrar em um opulento banheiro da Casa, é possível ver parte de um corpo enforcado, com um buquê de flores em uma das mãos. Mesmo suspeitando do que está por vir, me aproximo para ver o rosto, que está inicialmente escondido por um vão do cômodo.
É Cattelan.
“Ele é um personagem complexo, e o próprio Maurizio Cattelan é um personagem, uma construção, uma invenção, como Pinóquio. Um Cattelan esconde outro Cattelan. É uma forma de alertar os espectadores para não aceitarem nada ao pé da letra,” me disse Vergne.
São tantos sustos em sequência que o visitante começa a ter a falsa sensação de que não pode mais ser surpreendido, até entrar no quarto ao lado e dar de cara com uma escultura que simula o Papa João Paulo II sendo atingido por um meteorito, La Nona Ora (1999).
Quando apresentou a obra, Cattelan jurou não se tratar de um ataque ao catolicismo, e sim de uma representação do peso do poder.
Da janela do quarto de Sua Santidade, é possível ver L.O.V.E. (2010), um dos trabalhos do artista que estão do lado de fora da Casa, espalhados pelo icônico Parque de Serralves.
À primeira vista, parece apenas uma escultura de uma mão com o dedo do meio em riste; depois vê-se que os demais dedos, que compunham uma saudação fascista, foram decepados.
Cattelan reserva uma última provocação — de gosto duvidoso — para a capela adjunta à Casa: uma figura infantil com o rosto de Adolf Hitler rezando ajoelhada no chão, Him (2001).
Quiçá o objetivo seja dar ao público a opção de decidir sobre a validade ou não daquela representação, mas confesso que só me fez ver um pouco mais de graça na banana colada na parede com silvertape.
Ah, a fruta também está exposta na casa, e é trocada a cada três dias.
Não me aproximei porque não estava com fome.











