Maior fotógrafo vivo, Sebastião Salgado viu coisas que desertificaram sua alma e esvaziaram sua crença na humanidade.
A certa altura de O Sal da Terra, documentário sobre sua carreira que deixa o espectador entre o êxtase e a lágrima, Salgado olha para a câmera e sentencia, sem expressão alguma no olhar: “Somos um animal muito feroz. Somos um animal terrível, nós, os humanos. Ninguém merece viver.”
Não se pode acusar de pessimismo um homem que viu (e fotografou) um pai que, após despejar o corpo do filho morto sobre uma pilha de cadáveres, sai dali conversando como se luto não houvesse, simplesmente porque aquilo é parte da vida nos confins africanos.
Quando pensamos em um fotógrafo que viaja o mundo, pensamos nas fotos exóticas da National Geographic, na elegância da aurora boreal e em aventuras na Antártica, mas o que marcou para sempre a vida e as íris de Salgado foram os massacres étnicos na África e na Europa, assim como a abundância de miséria no mundo, que desafia os avanços da globalização.
Quando a internet ainda não era onipresente, as fotos de Salgado deram a leitores de grandes jornais do mundo pelo menos uma vaga ideia do coração da escuridão.
Trabalhando frequentemente com a ONG Médicos sem Fronteiras, Salgado documentou — e o filme mostra — uma extensão de terra a perder de vista coberta por tendas brancas de refugiados. Milhões deles. Viu igrejas e escolas onde crianças e mulheres se esconderam da matança assumindo haver ali um abrigo seguro, tragicamente pagando com suas vidas pelo erro de acreditar que o mal respeita algum limite.
O Sal da Terra conta a história improvável do menino que nunca havia lidado com dinheiro quando foi estudar na cidade, já que fora criado na economia de subsistência da fazenda da família em Aimorés, no interior de Minas. Aquele ambiente educou seu olhar e pariu o artista cujas fotos, merecidamente elevadas ao status de arte, hoje chegam a custar 30 mil reais nas galerias que o representam.
Depois de clicar a “América Latina profunda” em andanças pela região, ou os “anjos” vitimados pela mortalidade infantil no Nordeste, Salgado entendeu que os humanos não ferem apenas uns aos outros, mas também o planeta. Nasceu o “Gênesis”, seu trabalho mais recente. Neste capítulo, é engraçado ver o fotógrafo se arrastando sobre uma estepe gelada para não espantar as morsas que ele tentava clicar — e reclamando do urso polar que não tinha o mesmo desconfiômetro.
Além de uma reflexão sobre a alma humana e um estudo sobre a fisionomia do planeta, as fotos de Sebastião são uma aula de economia no sentido mais amplo da palavra, e um lembrete de que o fracasso da politica e o fracasso moral podem tomar formas simplesmente inimagináveis. (Há uma crítica de que a chamada ‘estética da miséria’ — se é que a obra de Sebastião pode ser rotulada com tanta rapidez — não muda as coisas. Mas, se isso for verdade, a ‘culpa’ certamente não é da arte.)
Ao mesmo tempo em que flerta com o abismo da desesperança, Sebastião e sua mulher encontram algum consolo ao descobrir que a natureza, quando dada uma chance, consegue dar a volta por cima.
A terra ao redor da fazenda de seus pais havia se tornado seca e estéril. Primeiro foi o desmatamento para vender a madeira, e depois o próprio gado que, ao pisar o solo para pastar, impede que a vida brote novamente. Com intuição e perseverança, os Salgados começaram a replantar a mata atlântica, e, ao longo de alguns anos, ela renasceu. Essa trajetória deu origem ao Instituto Terra, que hoje ajuda outros a replicar a experiência.
A obra de Sebastião Salgado é um passo em direção a uma redenção improvável, mas é um passo que precisa ser dado.
O Sal da Terra está em cartaz em 13 capitais, e não pode haver um uso mais inteligente do seu feriado.