Há viagens que são mais do que deslocamentos no espaço. São travessias no tempo, mergulhos em histórias que moldaram a humanidade.
Foi assim que me senti ao percorrer os cinco países da Ásia Central terminados em “istão”: Turcomenistão, Tadjiquistão, Cazaquistão, Uzbequistão e Quirguistão.
O que me levou até lá foi a curiosidade pela Rota da Seda, aquela rede de caminhos que, por séculos, conectou a China ao Mediterrâneo e transportou muito mais do que seda e especiarias: por ela circularam ideias, religiões, artes e saberes que mudaram o mundo.
Antes de partir, mergulhei na leitura de Sovietistão, da antropóloga norueguesa Erika Fatland, que mostra como esses países foram moldados pelo passado soviético e como, apesar de compartilharem o sufixo “istão” – do persa, que significa “terra” ou “lugar” – cada um é profundamente diferente.
No Turcomenistão, 80% do território é deserto. Ashgabat, a capital de mármore branco, parece um delírio arquitetônico em meio ao vazio, enquanto a cratera flamejante de Darvaza, a chamada “Porta do Inferno”, arde há décadas. É um dos regimes mais fechados do mundo, conhecido como a “Coreia do Norte da Ásia Central”.
O Tadjiquistão, em contraste, é montanhoso em mais de 90% de sua geografia. Entre vales e picos nevados, brilham lagos glaciais como o Iskanderkul, cujo nome significa literalmente “Lago de Alexandre”. A tradição local associa o lago às campanhas de Alexandre, o Grande, que teria passado por essas terras em sua conquista rumo ao Oriente. Algumas lendas dizem que seu cavalo Bucéfalo morreu ali. Pobre e isolado, o país carrega cicatrizes de uma guerra civil recente, mas também a beleza intocada do Pamir, o “telhado do mundo”.
O Cazaquistão é o 9º maior país do mundo em extensão territorial, com estepes infinitas e cidades futuristas. Rico em petróleo e gás, equilibra tradição nômade e modernidade acelerada. Em Almaty, capital cultural, vi o peso da herança soviética nos teatros, monumentos e museus, e a promessa de futuro no novo centro de arte contemporânea que está sendo erguido.
O Uzbequistão é o coração da Rota da Seda. Samarcanda, Bukhara e Khiva não foram apenas pontos de parada para caravanas carregadas de mercadorias, mas verdadeiros centros de ciência, filosofia e poesia. Foi aqui que viveram ou passaram nomes como Al-Biruni, pioneiro dos estudos de religião comparada; Al-Khwarizmi, considerado o pai da álgebra; e Omar Khayyam, poeta, matemático e astrônomo. Essas cidades-oásis abrigaram bibliotecas e madrassas (escolas corânicas) que atraíam estudantes da Pérsia, Índia e do mundo árabe, criando um ambiente de intensa troca cultural.
Por fim, o Quirguistão é a terra dos cavalos e dos nômades. Entre montanhas verdes e o lago Issyk-Kul, ainda se veem yurts (tendas circulares tradicionais dos povos nômades da Ásia Central) erguidos nos pastos de verão. Aqui, o épico de Manas é tão presente quanto a música do komuz, instrumento tradicional que ecoa a alma do povo. É talvez o país onde a vida nômade mais resiste, não como espetáculo para turistas, mas como modo de vida.
Viajar pelos “Istãos” é ver de perto como o passado soviético ainda se mistura com a importância histórica e comercial da Rota da Seda, essa rede que moldou grande parte da história humana ao conectar civilizações, impulsionar o comércio e difundir ideias, religiões e saberes entre o Oriente e o Ocidente. É também confrontar contrastes brutais: entre riqueza e pobreza, isolamento e globalização, silêncio das montanhas e excesso das capitais.
Mas acima de tudo, é encontrar pessoas. Crianças que perguntam sobre o Brasil, famílias que abrem suas casas para oferecer pão fresco e chá fumegante, pastores que nos olham com curiosidade entre rebanhos de ovelhas. Nos “Istãos”, a hospitalidade não é formalidade: é essência. E isso tem raízes históricas. Ao longo da Rota da Seda, os caravanserais eram pontos de descanso para mercadores e viajantes.
Para que as rotas comerciais não fossem desviadas, esses locais precisavam ser seguros, acolhedores e generosos: pão, chá quente, abrigo e proteção. Mais que cortesia, era uma questão de sobrevivência e de economia. Essa tradição atravessou os séculos e ainda hoje se sente em cada casa que abre as portas, em cada mesa farta, em cada gesto de bem-vinda.
Voltei com a sensação de ter atravessado não só fronteiras geográficas, mas também camadas da história. Porque viajar pelos “Istãos” é um lembrete poderoso de como este pedaço de terra, entre desertos e montanhas, já foi o elo que conectava continentes inteiros.
E talvez essa seja a maior lição dessa viagem: entender que a Rota da Seda não é passado distante. Ela ainda pulsa nas cidades, nas tradições, nos encontros e nos mostra que o mundo sempre esteve mais interligado do que imaginamos.
Adriana Lacerda é curadora de viagens de conhecimento na NomadRoots.