Um fato raro e inusitado aconteceu em um leilão de arte esta semana em São Paulo.
A Prefeitura do Rio tombou e desapropriou três obras no dia do leilão – uma delas reconhecida como sendo do Mestre Valentim e que era a estrela entre as mais de 180 peças colocadas à venda.
O prefeito Eduardo Paes argumentou que as obras de Mestre Valentim são um patrimônio do Rio e queria cobrir a oferta do leilão.
É uma atitude rara no Brasil, mas muito comum em países como a França, em que os governos exercem seu direito de preferência para ficar com obras consideradas patrimônio cultural.
O leiloeiro Luiz Fernando Moreira Dutra diz que isto nunca aconteceu nos leilões que vem realizando há 38 anos. Dutra imediatamente retirou as obras da disputa – e se mostrou até comovido com a diligência da prefeitura do Rio.
“O prefeito agiu como todo governante deveria agir com patrimônios históricos,” disse o leiloeiro.
A representação do Divino Pai Eterno, atribuída ao Mestre Valentim, é uma escultura de madeira talhada e policromada que originalmente fazia parte dos ornamentos da Igreja de São Pedro dos Clérigos, que ficava na Avenida Presidente Getúlio Vargas, no centro do Rio.
Mestre Valentim, um homem negro, foi um importante escultor e arquiteto que atuou no Rio de Janeiro no século XVIII. É considerado um dos principais nomes da arquitetura e escultura do período colonial, e seu nome é colocado ao lado de Aleijadinho no hall da fama dos escultores.
Os cariocas veem as obras do artista em muitos lugares pelos quais passam todos os dias, como o Chafariz da Pirâmide, o Portão e o Chafariz do Passeio Público, além de esculturas famosas como Ninfa e Narciso, expostas no Jardim Botânico.
A própria Igreja de São Pedro dos Clérigos foi uma obra importante do escultor e arquiteto.
A igreja tinha uma planta elíptica, o que a tornava uma obra arquitetônica peculiar e excepcional no contexto da arquitetura colonial brasileira, disse Paulo Garcez Marins, o curador do Museu Paulista da USP (mais conhecido como Museu do Ipiranga).
Mas a história de Mestre Valentim parece mesmo estar fadada a fatos raros e inusitados.
A igreja que ele construiu foi demolida na década de 1940, apesar de já estar tombada pelo IPHAN.
“Isso é algo muito raro na história do Brasil: o ‘destombamento’ de um bem que já estava legalmente protegido pelo tombamento,” disse Marins.
O problema é que, durante o Estado Novo (1937-1945), a igreja estava no caminho do deslumbramento de Getúlio Vargas, que queria mostrar que o Rio tinha ares de metrópole com uma avenida gigantesca ladeada por grandes prédios.
Para abrir a avenida tal qual ela é hoje, três igrejas foram demolidas – entre elas, a São Pedro dos Clérigos. A única preservada foi a Candelária.
Após a demolição, fragmentos e peças da igreja foram leiloados, doados ou vendidos, e estão dispersos em acervos como o Museu Sacro de São Paulo e a coleção Ema Klabin, disse Marins.
Há dúvidas se o tombamento decretado por Paes foi a via correta para a prefeitura conseguir o que queria.
Segundo a jurista Denise Puertas, doutora em Direito pela USP, a Constituição permite a municípios, Estados e União fazer tombamentos para proteger seu patrimônio cultural – mas eles precisam se restringir aos limites de seus territórios.
A forma correta, segundo Denise, seria usar o direito de preferência no momento de realização do leilão (sem fazer o tombamento). E o Rio teria que usar um de seus museus como veículo, porque a prerrogativa do direito de preferência é limitada a estas figuras jurídicas, segundo o Estatuto dos Museus.
“Este caso me lembrou o Abaporu, da Tarsila do Amaral, que hoje se encontra em Buenos Aires,” disse a jurista. “É evidente que uma obra como essa está revestida de valor cultural para os brasileiros. Mas a União não poderia tombar a obra e, ainda que o fizesse, os efeitos seriam meramente de reconhecimento, não sendo possível este controle de entrada e saída de uma obra que já não está mais no Brasil.”
A obra atribuída ao Mestre Valentim foi tombada junto com um altar com talha frontal do Agnus Dei e um par de anjos. Todos faziam parte do acervo da Igreja dos Clérigos, e foram colocadas em leilão pelo espólio de Cárbia e José Celestino Bourroul com um lance mínimo de R$ 1,5 milhão.
A prefeitura pretende pagar este valor mínimo e colocar as peças em exposição no Museu de Arte do Rio.