O austríaco Herbert von Karajan (1908-1989) fez nada menos do que quatro registros diferentes das nove sinfonias de Beethoven (1770-1827). A cada uma delas trazia uma nova leitura, um novo aprofundamento das obras criadas pelo gênio de Bonn.
O jornalista paulistano Júlio Maria, por seu turno, nunca regeu uma orquestra e é um moço de fino trato – de modo algum lembra o estilo ditatorial do maestro, um dos maiores nomes da regência do século XX.
Mas a exemplo de Karajan, Júlio se permitiu revisitar o que já havia nascido em meio a aplausos da crítica. Elis: Nada Será Como Antes – Edição Revista, Atualizada e Ampliada (Companhia das Letras; 480 páginas; 109 reais) é, como o próprio nome indica, uma versão 2.0 da biografia lançada por ele próprio dez anos atrás. (Para comprar, clique aqui)
O escritor diz que praticamente reescreveu o livro, adicionando mais falas de Elis, contando histórias inéditas e trazendo até o repertório de um novo disco que ela estava preparando – o livro lista as 26 faixas que seriam pinçadas para o álbum.
Elis Regina de Carvalho Costa (1945-1982) é a maior cantora brasileira de todos os tempos – e olha que a disputa nesse campo sempre foi dura.
Estilisticamente, ela combinou o cantar emotivo das rainhas do rádio (Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso) a uma interpretação moderna, digna das grandes damas do jazz americano. Elis colocava emoção em cada sílaba – e como isso faz falta nos dias de hoje – e sempre foi dona do próprio nariz.
Gravou o que quis, quando quis e como quis. Ajudou a popularizar compositores como Ivan Lins, Milton Nascimento, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Renato Teixeira e Guilherme Arantes, entre outros.
A morte de Elis, em 1982, trouxe um problema para os admiradores de música e executivos de gravadoras. Por décadas eles foram (e ainda são) acometidos por um sentimento sebastianista, buscando uma intérprete que possa ser aclamada como “a nova Elis”.
Leila Pinheiro, Adriana Calcanhotto, Sandy (isso mesmo: Sandy) e até Maria Rita, filha de Elis, receberam a incumbência de substituir a mulher que transformou canções como Casa no Campo e Como Nossos Pais em clássicos.
Dono de uma alma investigativa, Júlio traz uma pesquisa extensa sobre as origens da cantora e o espaço que conquistou no cenário nacional. Um espaço, diga-se, conquistado na base do talento e da personalidade forte.
O escritor narra com detalhes os embates de Elis com Maysa (1936-1977) e seu primeiro marido, o jornalista e letrista Ronaldo Bôscoli (1928-1994), além de um momento em que Elis vetou Nana Caymmi (1941-2025) em O Fino da Bossa, o programa que Elis apresentava na TV Record nos anos 1960.
Outra vantagem em relação à versão anterior é que Júlio pode até retratar o agora famoso comercial em que ela “contracena” com Maria Rita ao som de Como Nossos Pais.
O capítulo sobre a morte de Elis, em 1982, abordar as circunstâncias da tragédia com o rigor jornalístico e o distanciamento que o caso merece. Era um dos pontos cruciais da primeira versão do livro, e ganhou ainda mais detalhes nesta edição.
E aqui, um detalhe importante: em momento algum os três herdeiros de Elis – João Marcello Bôscoli, Pedro Mariano e Maria Rita – interferiram na feitura do livro. Como bem pontuou João Marcello, “sou filho de uma mulher que passou a vida inteira contra a censura. Não posso ir de encontro a essa filosofia,” disse.
Elis – Nada Será Como Antes é um retrato fundamental para conhecer a melhor cantora do País. Em breve, espero que Júlio Maria tome coragem para reger a Sexta de Beethoven.