Como a imprensa deve lidar com um presidente boquirroto, que atropela as instituições e semeia a divisão no país?
Acredite ou não, este problema existe — nos Estados Unidos — e o New York Times está pisando em ovos para lidar com o assunto.
No início do mês, uma manchete do jornal sobre declarações do presidente Trump causou irritação entre políticos da oposição — e dentro da própria redação do jornal.
O editor-chefe, Dean Baquet, e o publisher do jornal, A.G. Sulzberger, viram-se compelidos a reunir todos os jornalistas numa conversa que durou mais de uma hora, para explicar por que o NYT, em vez de descrever o discurso de Trump como “racista” — como fazem outros veículos — prefere apenas “mostrar os fatos e deixar que o leitor chegue à sua própria conclusão”.
Tudo começou quando Trump visitou a cidade de El Paso depois da chacina que matou 22 pessoas. Na matéria que descrevia a visita do presidente à cidade, o NYT disse: “Trump exorta à união contra o racismo.”
Como Trump tem um histórico conhecido de dividir o País com suas falas, a manchete pareceu ingênua ao não contestar sua hipocrisia, e uma avalanche de críticas soterrou o jornal. A deputada Alexandria Ocasio-Cortez disse que a manchete mostra como a “covardia” de certas instituições acaba ajudando os racistas, e o pré-candidato à Presidência Cory Booker disse que o NYT tem muito o que melhorar.
Em poucas horas, o jornal mudou a manchete para “Atacando o ódio, mas não as armas,” o que aplacou alguns ânimos mas não resolveu de todo o problema.
O episódio foi a gota d’água numa insatisfação crescente entre jornalistas do NYT — particularmente os mais jovens — que gostariam que o jornal pegasse mais pesado com Trump.
“Há um sentimento geral de frustração porque, apesar de fazermos um bom trabalho, sentimos que precisamos fazer mais para que Trump responda rigorosamente por suas ações,” um jornalista do NYT disse à CNN.
Na reunião com a redação, Baquet admitiu que a manchete foi um erro — “a fucking mess” — disse que está aberto a sugestões de como cobrir melhor o problema do racismo, mas também disse que o jornal não vai se deixar pautar pelo que falam no Twitter.
Numa entrevista à The Atlantic, Baquet disse que a manchete foi fruto de um problema operacional — o espaço na primeira página era limitado. Os editores “vieram com uma manchete que era simples demais e não continha ceticismo suficiente,” disse Baquet, para quem “as pessoas às vezes esquecem que um jornal é uma coisa mecânica.”
Em 2017, Baquet já havia articulado sua política editorial em relação à Casa Branca: “Nosso papel não é ser oposição a Donald Trump, e sim cobri-lo agressivamente.”
O negócio de mídia é, em grande parte, um negócio de afinidade. As pessoas assinam (ou lêem de graça) os veículos com os quais se identificam. Para o NYT, a sintonia fina é entre ser mais assertivo, o que agradaria a seu público liberal, e ser assertivo demais, o que levaria outros leitores a acusar o jornal de “editorializar” a notícia.
O problema é que o bom e velho jornalismo sempre foi e será baseado em dizer as coisas como elas são — mas o que fazer quando as declarações oficiais são cheias de “fatos” facilmente contestáveis?
A repórter investigativa Julia Angwin, dona de um Pulitzer, resumiu assim o impasse: “Os jornalistas começaram a entender que a ideia de objetividade — que todos fomos educados e seguir — não está funcionando. Está levando a uma falsa equivalência, em que você apenas repete uma mentira que foi dita. Todo mundo está buscando uma nova diretriz, e eu acho que devemos usar a ciência: testar a hipótese — “o que o Presidente diz é verdade?” — e tentar oferecer ao leitor uma análise.”
Baquet disse que o papel do NYT “não é ser o líder da resistência”, acrescentando que “um dos problemas” que ocorreria se o jornal assumisse esse papel é que “inevitavelmente a resistência vence.”
“Inevitavelmente, as pessoas fora do poder ganham poder novamente. E, nesse ponto, o que você se torna? Você se torna apenas o pateta das pessoas que venceram. Nosso papel é manter todo mundo prestando contas.”