Assim como os amantes do tango dizem de Carlos Gardel, Gal Costa “está cantando cada vez melhor”. 

Um EP (nos tempos antigos, um ‘compacto duplo’) com três gravações inéditas da musa do tropicalismo, que morreu em 2022, acaba de chegar de mansinho às plataformas de streaming.

A Morte, de Gilberto Gil; Vale Quanto Pesa, de Luiz Melodia e O Dengo que a Nega Tem, de Caymmi, foram gravadas de 24 a 26 de junho de 1972, em São Paulo, na esteira do sucesso do show/disco Fa-Tal – Gal a Todo Vapor, de 1971.

As quatro faixas integravam o repertório de Até 73, uma mini-turnê que Gal Costa e Gil fizeram em 1972. 

A Universal, que detém os direitos fonográficos do EP, não deu maiores detalhes sobre a descoberta, nem explicou o porquê das faixas nunca terem sido lançadas. “O departamento de catálogo trabalha para isso,” foi o máximo de explicação que deram.

O processo de gestação do EP é um mistério até para quem trabalhou com Gal Costa naquele período.

“Não lembro de ter estado envolvido neste projeto,” disse Paulinho Lima, um dos empresários que a cantora teve naquele período. 

“Me parece que foi feito depois do show Fa-Tal e antes do álbum Índia (1973), quando a Gal voltou a ser empresariada por Guilherme Araújo. O seu acervo de gravações é o melhor de todos em relação às suas contemporâneas. Gal é inesquecível,” derrete-se. 

O baterista Tutty Moreno, por sua vez, lembra do clima tranquilo que imperou no estúdio. 

“O grupo estava entrosado e o relacionamento era ótimo. Gal estava numa fase muito criativa e completamente solta, à vontade. Fizemos alguns trabalhos juntos, com esse mesmo grupo. Gal estava muito vibrante e participativa,” disse. 

Tutty, aliás, brilha particularmente em dois momentos do EP – em Vale Quanto Pesa, de Melodia, em que ele e Perna Fróes comandam o ritmo, e na quebradeira desenfreada que toma conta de O Balanço que a Nega Tem, canção de Caymmi que se estende por cerca de sete minutos.

A Morte, de Gilberto Gil, se destaca em meio ao repertório por motivos especiais. Primeiro, tem uma letra tão impactante que nunca foi gravada pelo seu autor – e sim por Jards Macalé. 

“Não sabia que Gal havia gravado essa canção. O que me chamou atenção foi Gil trabalhar um tema tão profundo como esse. Eu a gravei em 1972 no meu  primeiro compacto,” lembra Macalé . (Em 2013, Ava Rocha revisitou a faixa num disco tributo ao autor de clássicos como Vapor Barato.) 

Criada num período particularmente turbulento da ditadura militar, A Morte fala do tempo de cada um, mas também alude ao fato de que nenhum cidadão estava a salvo da ferocidade dos órgãos da repressão daquele período. 

A morte é rainha que reina sozinha/ As rainhas são quase sempre prontas/ Ao chamado dos súditos/ Súbito colapso/ Pode ser a forma da morte chegar”, diz a letra. Que, ao contrário do que possa parecer, foi criada em clima mais do que ameno.

“Não houve clima pesado, pelo contrário. Vi a música ser composta pelo Gil, assim como vi outras também dessa fase,” diz Tutty. 

Numa ironia cruel, o “súbito colapso” a qual Gil se refere na letra atingiu Gal Costa em 9 de novembro de 2022. Ficou a saudade, e agora, este disco que estava perdido.