PALO ALTO, Califórnia – No Brasil, existem 150 mil pacientes em diálise, e 30 mil deles aguardam por um transplante de rim.
Milhares morrem na fila.
Nos EUA, a situação não é muito diferente. Mais de 70 mil pessoas esperam pela doação de um órgão compatível.
Lá, ao menos, existe a possibilidade da realização da troca de rim em vida, algo que salvou milhares de vidas nos últimos anos. É feito um matching no qual um familiar de um doente doa em vida um de seus rins para que o seu parente possa receber em troca um órgão compatível.
No Brasil, apenas familiares podem fazer a doação em vida – e isso, obviamente, quando existe a compatibilidade. Sem o “mercado” de troca de rins, a fila do transplante anda mais devagar. Menos vidas são salvas.
O principal idealizador da troca de rins foi o economista americano Alvin Roth, um dos ganhadores do Nobel de 2012 pela sua contribuição em pesquisas para corrigir as falhas de mercado, aprimorando os métodos de matching.
A partir de estudos que fez com colaboradores, Roth passou a aplicar os sistemas de market design para aprimorar processos como a seleção de estudantes pelas escolas e universidades, a escolha de médicos residentes pelos hospitais e a seleção de doadores de órgãos.
Em conversa com o Brazil Journal na sua sala no Departamento de Economia em Stanford, Roth disse que em muitos países questões morais impedem que haja a troca de rins ou que mulheres possam ser pagas para fazer barriga de aluguel. São mercados considerados “repugnantes”, como os define o economista.
“A resistência é, para mim, um pouco enigmática. Fazer transplantes sai mais barato do que manter os pacientes na diálise,” diz Roth. “Existe tanta preocupação que as pessoas acabam perdendo de vista a realidade de que milhares de pacientes perdem a vida por causa da falência dos rins.”
Roth expôs suas ideias ao grande público no livro Who Gets What – And Why: The New Economics of Matchmaking and Market Design, de 2016, que no Brasil saiu com o título Como os Mercados Funcionam (Portfolio Penguin).
Nesta entrevista, Roth explica por que defende a legalização ampla das drogas e comenta como aprimorar os mercados onde a maconha já ganhou sinal verde.
Nos EUA e em muitos outros países, o seu trabalho e o de outros pesquisadores contribuíram para melhorar a fila para o transplante de rins. No Brasil, continuamos com o sistema tradicional, com uma longa espera de doadores. Por que é tão difícil fazer reformas desse tipo nos serviços públicos tendo como base os ensinamentos da economia moderna?
Um transplante depende sempre de uma doação de órgãos, seja de uma pessoa morta ou de um indivíduo vivo. É natural que os familiares e a sociedade de maneira geral tenham preocupação a respeito de como isso será feito, de maneira ética e cuidadosa.
O Brasil faz muitos transplantes. Então não existe uma restrição do lado da capacidade médica para que mais transplantes possam ser feitos. Mas quando olhamos o total de transplantes de rins em relação ao tamanho da população, o número não é tão grande assim.
Enquanto isso, existem milhares de pessoas fazendo diálise, porque os transplantes não têm sido suficientes. A questão, portanto, passa por permitir que ocorram mais doações em vida, e a troca de rins é uma maneira de as pessoas ajudarem a salvar alguém querido.
O Brasil poderá ser um dos próximos países a realizar a troca de rins. Já foram feitas algumas cirurgias experimentais, com autorização legal. Os pesquisadores poderão ganhar respaldo para fazer mais operações desse tipo e aí, talvez, a sociedade possa se convencer da importância da troca de rins.
Quais os obstáculos que impedem a adoção da troca de órgãos? São questões éticas, morais, religiosas?
Um pouco de todas essas coisas. Existem aqueles preocupados com a possibilidade de pessoas pobres e mais vulneráveis terem os órgãos roubados. Evidentemente, deve haver total segurança de que isso não vai acontecer. Mas é claro que os pobres também gostariam de salvar as vidas de pessoas queridas dando-lhes um rim.
A resistência é, para mim, um pouco enigmática, especialmente nos países mais pobres. Fazer transplantes sai mais barato do que manter os pacientes na diálise.
Às vezes, portanto, existe tanta preocupação com a possibilidade de os doadores serem abusados de alguma maneira, ou de os órgãos serem roubados, que as pessoas acabam perdendo de vista a realidade de que milhares de pacientes perdem a vida por causa da falência dos rins.
No Brasil, muitos casais que não podem ter filhos compram sêmen importado dos EUA e de outros países. Não existem muitos doadores no País, porque a venda de sêmen não é permitida. Existem outros exemplos de “falhas de mercado” no sistema de saúde?
Um caso é o do plasma sanguíneo. Praticamente todos os países que não permitem que os doadores sejam remunerados possuem uma quantidade insuficiente de plasma. Mas você pode comprá-lo dos EUA. Somos a Arábia Saudita do plasma sanguíneo. Porque, aqui, os doadores podem ser remunerados.
O Canadá, onde a venda não é permitida, coleta apenas 15% do necessário. Acham imoral o pagamento. Então compram plasma dos EUA.
Esses mercados são considerados repugnantes pelas pessoas. São mercados nos quais alguns gostariam de se envolver, mas aos quais outros se opõem por razões morais.
Esse também é o caso da barriga de aluguel?
Absolutamente. A barriga de aluguel é legal na Califórnia. Você pode ter um filho, você e sua esposa ou seu parceiro, e ter os nomes na certidão de nascimento. Mas em alguns lugares, na Europa Ocidental em particular, isso não é possível.
Casais europeus que vêm ter filhos na Califórnia, com barriga de aluguel, às vezes precisam adotar seus próprios filhos para legalizá-los.
Existe a preocupação de que as mães de aluguel possam ser exploradas de alguma maneira. Mas a Califórnia não é um lugar pobre. Difícil imaginar que os italianos estejam explorando californianas para ter filhos.
O senhor, como muitos economistas, defende a liberalização das drogas, mesmo aquelas consideradas mais pesadas. Mas não considera que seja uma falha e tanto de mercado quando o consumo é liberado, mas a produção não? Não existe aí um incentivo para o tráfico e o crime organizado?
Com certeza. Na realidade, importamos, nos EUA, muitas drogas ilegais que chegam pela fronteira com o México. Em contrapartida, exportamos armas. As armas são legais no Texas, mas ilegais no México. Os caras que compram as armas são os que nos vendem as drogas.
É algo que cria problemas nos dois lados da fronteira. Estamos claramente fazendo um péssimo trabalho no combate às drogas.
Tivemos 100.000 mortes por overdose de drogas no ano passado nos EUA. Não estamos protegendo nossos cidadãos vulneráveis. Faz sentido começar a experimentar políticas de redução de danos, como alguns países já fazem, oferecendo drogas para viciados, por exemplo.
Devemos tratar os viciados em drogas como criminosos ou pacientes? Como economista, acho que devemos pensar em tradeoffs. Então devemos pensar não apenas naquilo que desejamos, ou que consideramos que seja ideal, mas naquilo que podemos obter.
Não queremos heroína nem fentanil. E o que estamos obtendo são 100.000 mortes por overdose por ano e criminalidade na fronteira.
Então, talvez devêssemos pensar em desenhos diferentes para as políticas públicas. Tratar os dependentes em drogas como pacientes. Eles não deixariam de ser dependentes, mas talvez se estivessem recebendo drogas de um farmacêutico e não de um criminoso haveria menos vítimas de fentanil.
Já tivemos nos EUA a experiência da Lei Seca. O álcool era ilegal, mas havia Al Capone e outros gangsters. Existem hoje, claro, pessoas com problemas de alcoolismo. Quem sabe fosse melhor se não existisse álcool, mas essa é uma possibilidade que não conseguimos obter.
Com relação à maconha, alguns estados americanos decidiram permitir o uso recreacional. Enquanto isso, uma lei federal mantém a ilegalidade. A liberalização tem sido positiva?
Vai ser cada vez mais difícil aplicar as leis contra a maconha, porque a maconha não é algo que desprezamos. Certa vez, escrevi um artigo que começava perguntando por que é tão fácil comprar drogas, mas tão difícil contratar um matador de aluguel.
Não odiamos as drogas, mesmo as mais terríveis, da mesma forma que temos repulsa por assassinos.
Existe um mercado legal na Califórnia, existe um mercado legal no Canadá. Mas os mercados legais de maconha não estão funcionando tão bem porque os mercados ilegais ainda existem. É muito difícil tornar algo ilegal em seu país que seja legal do outro lado da fronteira.
É o mesmo que ocorre com a barriga de aluguel. No Canadá, a barriga de aluguel é legal. Eles reconhecem a paternidade, mas você não pode pagar pela barriga de aluguel. Portanto, não há tantas barrigas de aluguel no Canadá, mas você pode vir para a Califórnia.
Há muito tempo se fala do potencial do mercado de carbono, mas até hoje eles não funcionam muito bem. Alguma sugestão para criar um mercado que contribua de fato para preservar a Amazônia e outras florestas tropicais? Os impostos sobre carbono podem ser uma alternativa mais efetiva?
Não sou especialista em carbono, mas li as mesmas histórias que você. Nós, economistas, adoramos a ideia de impostos sobre o carbono, mas eles são difíceis de implementar. Quando as coisas são difíceis de implementar, vale a pena prestar atenção. Foi pensando nisso que cheguei ao estudo sobre os mercados repugnantes.
Também acho complicado implementar o comércio de licenças de carbono. Posso emitir muito carbono na minha fábrica e depois comprar licenças de carbono do Brasil, para que algumas árvores sejam plantadas. E se essas árvores forem cortadas mais tarde?
Não consigo ter boas ideias sobre como lidar com essas questões. Mas um problema semelhante foi superado com a preservação de animais na África. Os países aprovaram, por exemplo, leis contra a venda de marfim dos elefantes, além de outras iniciativas do tipo.
Mas o que parece mais relevante é que foram desenvolvidos serviços e indústrias que dependem da preservação dos animais, como o turismo de safári.
Conseguiram tornar mais lucrativo para a população local receber os turistas do que matar os animais. Uma vez que os animais sejam considerados valiosos vivos, fica mais fácil protegê-los. Talvez seja possível fazer algo semelhante para preservar as florestas.