Na semana passada o Brazil Journal publicou um artigo comentando os valuations de startups locais.

O texto se baseava num relatório da Spectra Investimentos, que expressou a visão de que atualmente o venture capital “parou de fazer sentido no Brasil.”

A opinião da Spectra – um dos maiores investidores do mercado de fund-of-funds de venture capital na América Latina – causou desconforto e perplexidade no ecossistema de inovação, e se tornou o assunto da semana entre empreendedores e investidores.

Concordamos com a Spectra que os valuations dos melhores deals no early-stage ainda sustentam um preço alto, sem um racional para tal. Mas discordamos veementemente da ideia de que o venture capital deixou de ser um bom negócio no Brasil.

Para evitar uma concepção equivocada sobre esta classe de ativos, que é fonte de inovação, progresso e riqueza para o País, gostaríamos de aprofundar a discussão abordando alguns tópicos mencionados pela Spectra.

Os valuations permanecem inflados irracionalmente

Concordamos com a Spectra neste ponto.

É no mínimo intrigante pensar que, de novembro de 2021 a novembro de 2022, enquanto o Bessemer Cloud Index corrigiu 60%, a mediana do valuation dos seeds nos EUA corrigiu apenas 14% no mesmo período, segundo dados da Carta, a empresa que gerencia o captable das startups americanas.

E de lá para cá, cresceu mais 7%, fechando 2023 a US$ 13,9 milhões.

Já no Brasil, continuamos a ver seed rounds de startups pré-operacionais na casa dos US$ 10 milhões, apesar de nosso mercado ser 13x menor.

O alto grau de sofisticação do mercado tech americano – após reciclar talentos e capital em vários vintages – sugere que as coisas de fato acontecem mais rápido lá do que no Brasil, o que justifica um múltiplo maior para as startups americanas.

Além disso, sofremos o ‘custo Brasil’, com um custo de capital mais elevado e um histórico de liquidez reduzido.

O valuation de entrada deveria importar muito para investidores early-stage. Para capturar o prêmio ajustado ao risco de investir aqui, a conta não fecha pagando caro já no early-stage.

Por que alguns gestores insistem em sustentar valuations altos?

O mercado de VC no Brasil foi importado do Vale do Silício junto de uma cartilha de “Ideal Founder Profile” que funcionou bem na América.

Ela prega que os fundadores com maior chance de sucesso são aqueles educados na Ivy League, donos de um MBA lustroso e com passagem por bancos, grandes consultorias ou Big Techs.

À medida que uma parcela significativa das gestoras de VCs passou a incorporar este arquétipo em suas teses, e dado que a oferta desses times considerados ideais é limitada, a indústria ficou na mão de um pool limitado de talento, inflando os valuation pagos no early-stage.

Disto deriva parte da irracionalidade nos valuations, mais tarde amplificada pelo FOMO (o ‘fear of missing out’) dos investidores e por um contexto de juros historicamente baixos – quase uma década de juros abaixo de 1% nos EUA e no Brasil, a menor Selic da história, 2% na pandemia.

Algumas destas distorções já foram removidas, mas os preços persistem como se o mundo não tivesse mudado.

Mesmo com estes ventos contra, por que o VC ainda faz sentido no Brasil?

O Brasil é muito grande para ser ignorado. Temos cerca de 215 milhões de habitantes, 81% de penetração na internet, e muito valor a construir por meio de negócios em tech.

Até hoje, menos de 2% das companhias listadas na B3 foram empresas investidas por VCs, comparado a 43% nos EUA.

Estamos entre as 10 maiores economias do mundo e, em termos de investimento em VC como porcentagem do PIB, o Brasil ainda investe cinco vezes menos que os EUA e dez vezes menos que Israel, segundo dados da McKinsey.

Segundo dados da própria Spectra, entre 1994 e 2022 os fundos de VC no Brasil se mostraram atrativos no período, com os fundos na média superando o Ibovespa, o CDI e o MSCI Emerging Markets, e provando que a classe de ativos é capaz de remunerar o prêmio esperado pela iliquidez dos ativos.

Precisamos voltar ao modelo de ‘stage financing’

Segundo Aswath Damodaran, “VC is a pricing, not a value game.

Precificar um ativo em linha com o risco do seu estágio de desenvolvimento é a principal premissa que sustenta o venture capital. Ao pagar um preço alto por toda a construção de valor futura no estágio seed “na cabeça”, estamos comprimindo o prêmio a ser capturado pelos investidores na rodada seguinte, a Série A.

A Conta Simples, a startup com a maior rodada anunciada no Brasil até este momento em 2024 (Série B de US$ 41,5 milhões) levantou sua primeira rodada por volta de US$ 1 milhão post-money.

A participação que nossa gestora, a SaaSholic, tem na Conta Simples já vale algumas vezes o fundo levantado e remunera bem o grande risco assumido na época. Em 2018 o fundador da Conta Simples tinha apenas um PowerPoint chamado Bankly – além de co-founders brilhantes e muita raça.

O Y Combinator (YC), por exemplo, já criou mais de US$ 600 bilhões em valor investindo cedo no Airbnb, Stripe e Brex nos EUA, e na Rappi, Conta Simples e Salvy, entre outras startups na América Latina.

O deal padrão YC é de “modestos” US$ 125.000 a US$ 1,78 milhão post-money, independente do estágio da startup. Por que startups aceitam a oferta agressiva do YC?

Simples, porque sua proposta de valor é capaz de levá-las do “Brasileirão para a Champions League”, abrindo portas para investidores globais, mitigando risco não sistêmico.

É a prova de que não existe “rodada muito dilutiva”, mas sim proposta de valor muito forte. Gestores pagam caro no early-stage na falta de um produto melhor do que vender dinheiro barato.

Diante disso, ao contrário do que a Spectra sugere, o prognóstico para o VC no Brasil, pelo que os dados indicam, se mostra muito positivo.

Mas podemos e precisamos concordar que os preços estão salgados e muitos investidores serão pegos de calça curta se não ajustarem a mão nos valuations do portfólio.

William Cordeiro e Gustavo Souza são managing partners da SaaSholic, uma gestora de venture capital especializada em empresas de software na América Latina.