Derrubado pela depressão desde que sua mulher morreu, Mark Scout deixou a universidade onde lecionava História para empregar-se na Lumon Industries, uma corporação de tecnologia (ou algo parecido).
Escolheu o novo trabalho porque ele oferece a oportunidade de, oito horas por dia, obliterar totalmente o sentimento de luto. Ocorre que a Lumon é pioneira em um procedimento conhecido como “ruptura”: alguns de seus funcionários recebem um implante cerebral, uma espécie de chip capaz de separar a memória em compartimentos estanques.
Acionado por um sinal emitido no elevador, o implante faz com que o trabalhador esqueça – sem perder seus conhecimentos e habilidades – a vida que leva do lado de fora. No horário de expediente, Mark não lembra que é viúvo e portanto não padece da tristeza que o debilita no dia a dia. Não tem ideia de onde mora, nem de onde nasceu ou cresceu.
Na hora da saída, ao deixar o elevador, ele recupera todas essas memórias, mas não recorda nada do que fez durante o dia. É como se houvesse dois Marks – um na hora do batente, outro na folga.
A premissa de uma cisão absoluta entre trabalho e vida pessoal operada pela neurotecnologia parece extrapolar os limites do que é plausível mesmo para a ficção científica. O autor desta resenha confessa que começou a ver Ruptura (Severance, Apple TV) com o receio de encontrar um roteiro que seria descartado por Black Mirror, a série que com frequência (mas nem sempre com competência) trata de tecnologias que alteram a memória.
Mas longe disso: Ruptura diz a que veio já no primeiro episódio, e partir daí só cresce em tensão até um final de temporada que deixa tudo em suspenso, inclusive a respiração do espectador (a Apple, aliás, já confirmou a segunda temporada).
No primeiro episódio, a vida melancolicamente pacata de Mark (Adam Scott) sofre abalos. Ele é alçado à chefia de seu departamento porque a pessoa que antes ocupava o cargo deixou a Lumon (e, claro, ninguém sabe por quê). De quebra, Mark terá de treinar uma nova funcionária, a rebelde Helly (Britt Lower).
Ruptura abraça o absurdo e o torna verossímil. A vida corporativa é satirizada com inteligência, a começar pelos programas de incentivos aos trabalhadores, que incluem prêmios vagabundos como a oferta de buffets com diferentes variedades de melão.
Ninguém sabe exatamente o que faz o departamento de Refinamento de Macrodados, onde atuam os personagens principais. Encontros com funcionários de outros setores são desencorajados, o que não impede Irving (John Turturro), subordinado de Mark, de começar um quase romance com Burt (Christopher Walken), do departamento de Ótica e Design.
A cultura empresarial da Lumon tem traços de seita religiosa: a supervisora de Mark, Harmony Cobel (Patricia Arquette) – que não passou pelo processo de ruptura – mantém, em sua casa, uma espécie de altar devotado aos fundadores da companhia. E como se isso tudo não fosse suficientemente amalucado, a certa altura Mark e Helly descobrem uma sala onde um funcionário solitário dedica-se a criar… cabritos!
O universo burocrático que escapa ao entendimento de quem nele trabalha lembra a obra de Franz Kafka. Até a geografia do escritório, com seus corredores brancos e labirínticos, tem muito de kafkiano. Mas ao contrário de outras emulações de Kafka que se veem por aí, sempre pesadas e sombrias, Ruptura incorpora o estranho humor que o tcheco imprimiu em obras como A Metamorfose e O Castelo. Seis dos nove episódios são dirigidos por Ben Stiller, ator com experiência cômica.
Mesmo o mais fanático workaholic em um momento ou outro encontra um renitente fundo de insatisfação na vida profissional. Muitos até trabalham com mais afinco esperando o fim do expediente.
Ruptura encena uma versão extrema dessas cisões da vida moderna e, na ficção, extremos são positivos – nos provocam a questionar as condições em que vivemos e, por que não, a rir delas.