Uma celebridade que disputou eleições como um “cidadão político” em vez de um “político profissional”. Um ex-democrata que virou republicano e remodelou a direita. Um defensor de ideias tradicionais contra uma revolução nos costumes. Um candidato a presidente que desafiou os limites da idade. O criador de um movimento para “make America great again.” 

Pensou em Donald Trump? Ronald Reagan fez primeiro.

Mas quanta diferença…

Mesmo entre os mais empedernidos fãs de Trump, o ex-presidente Reagan costuma ser reverenciado como um político mais talentoso, mais simpático, mais otimista, mais racional  – e principalmente mais eficaz que o atual presidente dos Estados Unidos.

Até na esquerda, que o via como um governante pró-ricos e contra os avanços dos direitos civis, há hoje espaço para elogios à sua extraordinária capacidade de comunicação e – pasme – algumas de suas conquistas político-econômicas.

Na direita, digamos, clássica, Reagan é um herói. Um ícone dos republicanos, apenas um degrau abaixo de Abraham Lincoln.

Agora, em meio à nostalgia pelo caubói que nos anos 1980 vislumbrou e acelerou o fim da Guerra Fria, uma excelente biografia que saiu no ano passado joga mais luz sobre o ex-presidente.

Reagan: His Life and Legend, do jornalista e historiador Max Boot, é a primeira biografia verdadeiramente exaustiva e equilibrada sobre Reagan. (Para comprar, clique aqui.)

Para começar, trata-se de um projeto de 11 anos, iniciado em 2013.

Durante este período, vários documentos perderam o status de secretos. Há, por exemplo, o teor da conversa entre Reagan e o premiê soviético Mikhail Gorbatchev num dos encontros que marcaram o histórico processo de desarmamento nuclear.

(Na ocasião, Gorbatchev impressionou Reagan citando uma passagem do Eclesiastes, sobre haver um tempo para jogar e outro para recolher pedras. “Agora é o tempo de recolher pedras jogadas no passado,” disse.)

No futuro, talvez mais documentos secretos sejam liberados. Mas não haverá tantas testemunhas vivas que tenham conhecido e trabalhado com o ex-presidente. Boot conversou com dezenas.

Foram essas as condições que permitiram um livro tão minucioso sobre Reagan – e ao mesmo tempo um grande panorama do século 20, desde o sucesso do rádio, o nascimento do cinema e depois da TV até os grandes abalos sociais, como as guerras mundiais, a depressão econômica, a Guerra do Vietnã, os assassinatos de Kennedy e Martin Luther King…

Conservador, mas pragmático

Qualquer que seja sua opinião sobre Reagan, ela dificilmente permanecerá a mesma após a leitura. Em parte, isso vem do próprio autor: filho de imigrantes judeus russos, ele era um admirador do presidente que denunciava “o império do mal”, mas deixou de se identificar com o Partido Republicano.

O principal motivo, no entanto, é a complexidade do personagem. Reagan era um ferrenho opositor de um governo grande, mas durante sua presidência o orçamento federal aumentou 70%; defendia o direito a portar armas, mas no governo da Califórnia promulgou as mais duras restrições a armamentos em todo o país; era contrário ao aborto, mas assinou uma lei estadual na Califórnia que elevou o número de procedimentos legais para terminar a gravidez em mais de 400 vezes em uma década.

Era então um liberal disfarçado? De jeito nenhum. 

Reagan é até hoje identificado com a supply-side economics (ou trickle-down economics), a ideia de que o aumento de oferta de produtos e serviços ajuda a economia. Daí vem a justificativa para grandes cortes de impostos, em especial para os ricos (porque os efeitos se espalhariam pela sociedade). Os anos Reagan foram de fato de recuperação, mas também de déficit – e na perspectiva de hoje nenhum dos dois foi assim tão extraordinário. Também se aproximou de governos autoritários, desde que anticomunistas.

Apesar de suas convicções, a maior característica de Reagan foi ter sabido firmar compromissos com o Congresso. No dizer de James Baker, seu chefe da Casa Civil, Reagan “era um verdadeiro conservador, mas, cara, quando se tratava de governar, como ele era pragmático.”

“Somos todos republicanos”

Mesmo as 1.331 páginas do livro poderiam ter sido preenchidas com as fantásticas tiradas de Reagan, um exímio autor de discursos e, mais ainda, um inigualável comunicador. Mas isso seria perder a floresta pelas árvores.

É claro que estão lá as mais marcantes. O principal, entretanto, é que Boot lhes confere o contexto, e isso inclusive potencializa seu efeito. Como a reação de Reagan após sofrer um atentado a tiros por parte de um desequilibrado mental.

“Amor, esqueci de me abaixar,” disse à primeira dama, Nancy, quando ela chegou ao hospital. Em seguida, ao ver Jim Baker, Ed Meese e Mike Deaver, seus principais assessores, reagiu: “Quem está cuidando da lojinha?”

Na sala de operações, prestes a ser anestesiado, dirigiu-se à equipe médica: “espero que vocês sejam todos republicanos”. Recebeu uma resposta à altura do Dr. Joe Giordano, o cirurgião principal e um democrata de carteirinha: “Hoje, senhor presidente, somos todos republicanos.”

Após ter perdido 3,5 litros de sangue e passado 12 dias no hospital, Reagan emergiu como um símbolo nacional.

“Ele conseguiu se tornar a bandeira”, escreveu o embaixador canadense Allan Gotlieb em seu diário. “Ele transcende a política.”

Essa imagem explica como Reagan passou praticamente incólume pelo escândalo Irã-Contras, a junção de duas ilegalidades – vender armas para o Irã, que sofria (e ainda sofre) embargo por seu apoio a grupos terroristas, para barganhar a libertação de reféns americanos no Líbano; e desviar a receita dessas vendas para os contra-revolucionários na Nicarágua, sem autorização do Congresso.

O máximo que sofreu foi uma admoestação da comissão investigadora por seu estilo de comando que delegava decisões demais aos assessores.

Algumas frases

Podia-se não concordar com Reagan, mas era impossível não admirar sua presença de espírito. Eis alguns exemplos:

Para aqueles que abandonaram a esperança, nós vamos restaurar a esperança, e nós vamos lhes dar as boas vindas para a cruzada nacional para tornar a America grande novamente”, no discurso de aceitação da candidatura a presidente, em 1981.

“Recessão é quando o seu vizinho perde o emprego. Depressão é quando você perde o seu emprego. Recuperação é quando Jimmy Carter perde o emprego,” quando foi criticado por confundir recessão (iniciada no final do governo Carter) com depressão.

“Na atual crise, o governo não é a solução para o nosso problema. O governo é o problema,” ao tomar posse.

Pressionado sobre sua mudança de posição em um modelo de cobrança de taxas, após ter afirmado que seus pés estavam “fixos em concreto nesta questão”, respondeu: “O som que você está ouvindo é do concreto rachando em volta dos meus pés”.

Na campanha à reeleição, então com quase 74 anos, questionado durante o debate contra o candidato democrata, Walter Mondale, se teria energia para enfrentar uma situação de crise: “Não vou fazer da idade um tema de campanha. Não vou explorar, por motivos políticos, a juventude e inexperiência do meu oponente.” Nem Mondale conteve o riso.

“Secretário-geral Gorbatchev, se o senhor busca a paz, se o senhor busca prosperidade para a União Soviética e para a Europa Oriental, se o senhor busca a liberalização: venha aqui para este portão! Senhor Gorbatchev, abra este portão! Senhor Gorbatchev, ponha abaixo este muro!”, em sua célebre visita a Berlim, em 1987, em frente ao portão de Brandenburgo e ao Muro que dividia a cidade entre uma parte comunista e uma parte capitalista.

Também é impossível não ver Reagan como o oposto de Trump em sua capacidade de rir de si mesmo. Em sua primeira campanha, acusado de só ter experiência como ator e questionado sobre o que faria como governador, respondeu: “Caramba, não sei. Nunca interpretei um governador antes.” 

Ronald e Donald

É certo que um livro de mais de mil páginas assusta um pouco. Queremos saber tanto assim sobre alguém? No caso de Reagan, a resposta é sim. Para quem se sentir intimidado, o livro é bem dividido e sempre é possível pular as partes de menor interesse.

Mas aí o leitor se arrisca a perder episódios saborosíssimos, como a fase em que Reagan, recém divorciado da primeira mulher, se tornou uma amante serial em Hollywood; ou o seu grande orgulho de ter salvado 77 pessoas do afogamento durante os anos em que foi salva-vidas (78, se contarmos a vez em que, já governador da Califórnia, pulou na piscina para salvar uma menina de 7 anos). Ou seu sucesso como locutor esportivo na faculdade – que o levou ao rádio e depois ao cinema. Ou seu talento limitado ator, compensado pela enorme boa vontade em fazer o que os diretores pediam. Ou sua atuação sindical, durante a qual se tornou informante do FBI (então uma agência em seu nascedouro) nos tempos de perseguição a simpatizantes do socialismo.

Ou sua relação nebulosa com extremistas de direita. Reagan jamais foi racista, e ele e Nancy tinham diversos amigos gays, mas não hesitava em usar uma linguagem codificada que agradava os extremistas.

Enfim, como qualquer personagem que se preze, Reagan não se ajusta a uma leitura simplória, esquemática, dicotômica. 

Uma coisa, porém, é cristalina: Ronald não é Donald.

Há semelhanças, sem dúvida. Mas elas são artificiais, ilusórias. Reagan era duro, porém incapaz de ódio. Mesmo quando criticava seus adversários mais ferrenhos, evitava citá-los pelo nome, atacando antes suas ideias. Reagan era extremamente favorável ao livre comércio: foi em seu governo que começou a integração com o Canadá e já havia a ideia de incluir o México, concretizada por Bill Clinton anos depois.

Reagan era também favorável à imigração. Jamais usou o termo illegal aliens”, dizia imigrantes sem documentos”. Fazia discursos duros, mas sabia negociar consensos. Foi uma estrela com milhões de fãs, e mantinha uma postura humilde e cordata.

Acima de tudo, tinha humor. Suas reuniões obrigatoriamente começavam com uma piada ou história engraçada. Manteve esse espírito leve até o fim da vida, mesmo com o avanço do Alzheimer.

A um amigo que foi visitá-lo um dia, Reagan confidenciou: “Sabe, esse Alzheimer’s não é tão ruim.” Verdade?, surpreendeu-se o amigo. “É. Todo dia você conhece gente nova.”

E todo dia é um bom dia para gente nova conhecer Ronald Reagan.