Vi Samuel Wainer pela primeira vez em 1972, numa saleta apinhada junto à fervilhante redação da Última Hora-SP, onde fui pedir emprego aos 22 anos. 
 
Com pouco mais de 60 anos e a aparência de um ancião, o homem que levou os óculos à testa e me fitou, curioso, por alguns minutos, era uma figura lendária, que construíra um império e influíra nos destinos do país. Àquela altura, tinha perdido tudo — jornais, poder, fortuna — e estava recomeçando.
 
No período que se seguiu até sua morte, em 1980, ele me ofereceria muitas oportunidades, entre elas o privilégio de ouvi-lo contar sua história — ou, como ele se orgulhava de dizer, sua “grande aventura”. 
 
Os depoimentos colhidos por mim e, em outros períodos por Sérgio de Souza, Hamilton de Almeida e Mylton Severiano, seriam mais tarde reunidos por Augusto Nunes na autobiografia “Uma razão de viver.” 
 
Depois de reencontrá-lo, agora, nas páginas de “Samuel Wainer – o homem que estava lá”, de Karla Monteiro (Companhia das Letras, 526 páginas) percebi que Samuel Wainer não cabe mais na moldura em que minha memória o guardara.
 
E não me refiro, é claro, aos cenários prosaicos em que convivemos nos anos 70 —  a redação da UH na Alameda Barão de Limeira, seu apartamento em cima de um supermercado na rua Pamplona, onde eu o entrevistava, ou mesmo os restaurantes barulhentos, frequentados por jornalistas e pela classe teatral.
 
O Samuel que surge dessa obra ultrapassa também o seu próprio relato autobiográfico — corajoso, fundamental, mas obrigatoriamente pessoal. Ele reaparece à luz de uma profusão de documentos, desencavados em arquivos oficiais de diversos países, do registro cotidiano proporcionado por jornais de todos os matizes, das análises de uma vasta produção acadêmica e de um coral de depoimentos de contemporâneos, familiares, amigos e adversários. Aquela história a que assisti guiada pelo seu olhar no retrovisor, e que começava a se cristalizar, pulou na minha frente, fresca como uma transmissão ao vivo.
 
Para além dos acontecimentos nacionais a que seu nome se associa, como o Estado Novo, a volta de Getúlio ao poder, as entranhas mal-cheirosas da política ou a reinvenção do jornalismo, a história de Samuel Wainer parece representar agora o próprio século XX. Ela tem origem nos pogroms da Europa Central, nas primeiras décadas do século passado — que fizeram a família Wainer deixar sua aldeia na Bessarábia para aportar no Brasil — reflete o papel do socialismo na mentalidade de sua geração e foi marcada pelos reflexos internacionais da ascensão do nazismo. Samuel encontrou no mundo pós-Segunda Guerra oportunidades de grandes coberturas, e sofreu na pele os efeitos locais da Guerra Fria. Como diz o título do livro: ele estava lá. Mas, fiel à missão das biografias, o século, tal como é descrito aqui, ergue-se como um pano de fundo, diante do qual se desenrola – sim, Samuel tinha razão – uma grande aventura humana.
 
A trajetória espetacular do menino pobre do bairro do Bom Retiro, em São Paulo, que se torna tycoon da imprensa, amigo –  e às vezes, arqui-inimigo – dos poderosos, apoia-se em doses imensas de inteligência e audácia. E confirma a tese de Samuel, expressa na autobiografia, de que nada tinham a ver com apreço pela ética as campanhas implacáveis que ele sofreu pelo acesso a recursos públicos para a fundação da Última Hora.
 
Além das rivalidades políticas e das batalhas financeiras, acompanha toda a sua trajetória o ódio que os barões da grande imprensa, oriundos da elite, devotaram àquele outsider, imigrante e, como se não bastasse, judeu, que ousara entrar para o clube e, supremo desaforo, fazer sucesso. Esse rancor, bem descrito pelo depoimento do jornalista Alberto Dines, encontra seu maior porta-voz em Carlos Lacerda.
 
Ex-companheiro na revista Diretrizes e amigo fraterno de juventude, ele se tornaria um adversário implacável, à frente de campanhas que levaram Samuel à cadeia e a Última Hora à beira da falência. Mas não há benevolência no relato. A obra descreve com riqueza de detalhes decisões impiedosas, ações interesseiras, frieza e vaidade, defeitos que, tanto quanto as virtudes, dão consistência humana ao personagem.
 
A relação com as mulheres, tão bem descrita agora, ajuda a compreender a personalidade de um homem cuja maior paixão foi um jornal – ou vários. Até antes desta biografia, apenas o terceiro e último de seus casamentos, com Danuza Leão, entrara na história — e espetacularmente, já que o romance começou numa visita dela quando ele estava preso, pelo pecado de ter nascido na Bessarábia e ser proprietário de jornal no país, e terminou quando ela o trocou por um homem pobre, obeso e deprimido, quase o antípoda do marido, o jornalista e escritor Antonio Maria. Que, aliás, trabalhava na Última hora.  O único comentário público de Samuel sobre o lugar de marido traído, pronunciado diante da redação muda, é uma cena inesquecível do livro, que não repito aqui para não estragar a surpresa.
 
Mencionada apenas de passagem na autobiografia, a primeira mulher de Samuel, Bluma Chafir, surge como personagem fundamental de sua existência, parceira de seus primeiros passos como jornalista e na fundação da Diretrizes, que o consagrou. O casamento, celebrado na sinagoga, durou 17 anos, foi interrompido uma vez quando ela teve um caso com um amigo do casal, Rubem Braga, e engravidou. Retomada algum tempo depois que ela abortou, a união ainda duraria alguns anos, até que Bluma o deixasse definitivamente. O segunda matrimônio, mais breve, com uma moça da alta sociedade carioca, Isa Reis, coincide com a fundação da Última Hora, em 1954. Houve, até o fim, dezenas de namoradas, algumas cumprindo o papel de companhia, outras de meros adereços.
 
Entre os personagens importantes  de quem Samuel foi próximo, houve três presidentes da república: Getúlio, Juscelino Kubitschek e João Goulart. Entre os figurantes de sua trajetória, surgem nomes do calibre de Salvador Allende, Brigitte Bardot, Roberto Rosselini, e Simone de Beauvoir. Nos anos dourados, Samuel viveu em mansões, no Rio e em São Paulo, permitindo-se extravagâncias como  um cinematográfico mordomo egípcio. Gastou a rodo a fortuna que ganhou. Quando a sorte virou – e o dinheiro prometido por Jango para uma emergência desapareceu na mão de um famoso lobista – não possuía reservas.
 
Embora tenha afirmado sempre que “jornal tem lado”, e jamais tenha fingido imparcialidade, Samuel desenvolveu um progressivo horror ao radicalismo, sobretudo no período que antecedeu o golpe militar de 1964, mas nada pôde fazer para contê-lo. A onda que se insinuava no horizonte ao longo de toda a sua vida adulta, oscilando entre vislumbres de um país potente e mergulhos no atraso, arrebentou, finalmente,  em 1964, marcando o clímax da narrativa e a derrota de Samuel — mas não o final da sua grande aventura. Representante de “uma raça que nunca morre”, segundo Nelson Rodrigues, ele continuaria a lutar e, às vésperas dos 70 anos, de volta às origens, orgulhava-se de viver de seu trabalho.
Uma fotografia famosa, estampada nas páginas centrais do livro, ganhou uma pungência quase insuportável neste Brasil de 2020: no alto da escadinha, à porta do avião que o levaria para o exílio, em maio de 1964, Samuel acena, comovido.  O gesto parece o adeus ao país que um dia o acolhera, mas também a sonhos e projetos, muitas vezes quase alcançados, de um Brasil melhor.
 
Por alguma razão, outra despedida de Samuel, esta aparentemente mais banal, me vem à lembrança ao contemplar a foto pela enésima vez.  Nela, vejo-o desembarcar de uma carona no nosso carro. Estava trêmulo mas radiante, em companhia de uma jornalista dinamarquesa, e acenou para mim e meu ex-marido, Mário Prata, na porta da boate Hipopotamus, na Avenida 9 de Julho em São Paulo. Foi a última vez que vi Samuel.
 
 
Marta Góes é jornalista, dramaturga e roteirista de televisão. Começou sua carreira na Última Hora-SP, de Samuel Wainer, de quem colheu depoimentos para “Minha razão de viver”.