Robert M. Parker Jr., o homem que estabeleceu o padrão mundial para o que se considera um bom vinho, aposentou-se formalmente na última quinta-feira. Coube a uma emotiva Lisa Perrotti-Brown, editora-chefe da publicação criada por Parker, a Wine Advocate, anunciar que “o pai da análise moderna de vinhos” pendurava suas taças Riedel de uma vez por todas.

Parker é o maior crítico de vinhos da história – e talvez o maior crítico vivo em qualquer área do saber humano, pelo menos se o critério for influência. Ironicamente, essa foi a razão de sua glória e também de sua desgraça. Parker tornou-se o vilão que os tradicionalistas amam odiar. 

Qualquer pessoa que já comprou uma simples garrafa de uva fermentada submeteu-se, direta ou indiretamente, ao campo de influência de Parker. Seus critérios moldaram não só o consumo, mas também a venda e produção da mais nobre das bebidas. 
 
Até a Europa se curvou. Em 1999, o presidente Jacques Chirac assinou um decreto nomeando Parker Chevalier dans l’Ordre de la Légion d’Honneur. Seis anos antes, François Mitterrand já o havia tornado um Chevalier dans l’Ordre National du Mérite. Em 2002, foi a vez da Itália nomear Parker um “commendatore” da Ordem Nacional do Mérito. 

Quando Parker fez sua primeira viagem à França, em 1967, o mundo era muito diferente – mas o mundo do vinho era ainda mais. 

 
Naquele ano, o jovem graduando de Direito de Baltimore, Maryland, foi atrás de uma bela senhorita que estudava na Universidade de Strasbourg, na Alsácia. Voltou de lá com duas paixões que nunca mais abandonou: a futura senhora Patricia Parker e a bebida de Baco.

Parker se formou advogado em 1973, mas as leis já não lhe despertavam o menor interesse. Cinco anos depois, largou a profissão e colocou seu dinheiro onde seu nariz e boca já estavam. Contrariando conselhos de familiares e amigos, que julgavam aquilo uma aventura romântica, criou o The Baltimore-Washington Wine Advocate, um guia de vinhos que mudou tudo nessa indústria sedutora e bilionária. 

Seu grande salto aconteceu quando Parker avaliou a safra de 1982 como uma das melhores da história recente da região de Bordeaux. A maioria dos críticos concorrentes considerou que o tórrido verão daquele ano resultaria em vinhos desequilibrados e com pouco potencial de guarda. Mas ao desarrolhar as garrafas, ficou evidente que Parker estava certo. Até hoje há grandes Bordeaux de 1982 em esplêndida forma.

Dali em diante, consumidores no mundo todo confiaram no julgamento de Parker para escolher seus rótulos. Há quase 20 anos, seu nariz recebeu um famoso seguro de mais de US$ 1 milhão – soma que seria devida caso seu prodigioso olfato, capaz de detectar os aromas de chão de bosque, charuto úmido e trufas brancas presentes nos grandes vinhos, viesse a falhar. Como a escritora Elin McCoy colocou em sua biografia de 2005, Parker se tornou “O Imperador do Vinho”.

A grande sacada de Parker foi o uso de uma escala de 100 pontos para avaliação. Simples e direto, esse mecanismo de marketing e comunicação permitiu que qualquer bebedor, independentemente da litragem acumulada, compreendesse instantaneamente a qualidade atribuída a cada garrafa. Os catálogos das importadoras, os sites de leilões, até as prateleiras de supermercados estão hoje apinhados de suas iniciais seguidas de uma nota: “RP 89” , “RP 90”, “RP 93”, “RP 97”. Os preços acompanham as classificações.   

O sistema de pontuação logo virou um sucesso – e alvo de controvérsias. Vinhos com histórias seculares não poderiam ser reduzidos a um número, diziam uns. Sua avaliação correta dependeria de conhecer e compreender suas origens, tradições e a cultura a seu redor. Como consumidores sentados em modernos restaurantes de Nova Iorque ou Cingapura podem entender o que é feito há gerações numa vila medieval de algum canto esquecido da França? Parker dizia que só a qualidade intrínseca do que estava na taça importava. Nada mais.  

Mas a maior crítica a Parker foi a de que ele deixa seu gosto pessoal tingir sua análise. O crítico ganhou fama – em parte justificada – de reservar suas melhores notas a bebidas muito encorpadas e concentradas, com baixa acidez, álcool elevado e generosas doses de carvalho. Os puristas europeus torciam o nariz e diziam que esses são os “vinhos Disneylândia”, com paladar frutado, doce e infantil que seria típico do americano médio.

O problema é que muitos produtores acabaram se esmerando em seguir essa receita, porque isso poderia render boas notas, que por sua vez garantiam as vendas. É o que se chamou de “Parkerização” dos vinhos – uma ditadura do gosto que teria erradicado parte da diversidade de estilos que as tradições locais haviam criado. Conseguir um cobiçado “RP 100” tornou-se o Santo Graal perseguido pela indústria. Compradores sedentos da China e do Oriente Médio se encarregaram de fazer a demanda por esses rótulos superar a oferta em muitas vezes e tornar seus preços, consequentemente, inatingíveis para muitos.

Há alguma verdade nessas críticas, mas apenas parcial. Dentre as notas mais altas de Parker estão alguns rótulos com perfil de “fruit bombs”, sobretudo da Califórnia, Austrália e regiões quentes, mas há também joias refinadas, complexas e sutis. Mais importante: o poder que Parker obteve foi decorrência de sua aceitação pelos consumidores, de seu mérito pessoal em saber interpretar o que as pessoas queriam e se comunicar de maneira simples e eficiente. Nada foi imposto. Muitos outros críticos escreveram sobre vinhos, mas as pessoas simplesmente não ligavam da mesma forma.

O legado de Parker também possui um lado positivo inequívoco. Ele ajudou a disseminar o gosto pelo vinho entre consumidores de todo o mundo. Desmistificou a bebida. Reconheceu sua qualidade – ou falta de — independente do pedigree e fama da família produtora. Posicionou-se como um Ralph Nader dos vinhos — o famoso advogado americano de defesa do consumidor é uma influência declarada. Quebrou preconceitos, inovou e foi o primeiro a reconhecer e celebrar novas regiões produtoras, da Austrália à Argentina, o que lhes garantiu um lugar nas prateleiras e adegas de todo o planeta onde antes só havia franceses e alguns poucos italianos e espanhóis. O mapa mundi do vinho hoje é substancialmente maior do que naquele distante 1967. A qualidade média do que se produz nunca foi tão alta. 

Em 2012, a Wine Advocate teve uma participação vendida a investidores asiáticos. Tornou-se uma máquina de ganhar dinheiro com publicações, aplicativos, seminários, cursos e degustações caríssimas. Em 2017, a Michelin, que publica o mais prestigiado guia de restaurantes do mundo, adquiriu 40% do negócio. Aos poucos, Parker limitou-se a cobrir apenas os vinhos de suas regiões preferidas, sobretudo Bordeaux, Rhône e Califórnia e terceirizou as análises dos demais para sua equipe. O homem Robert Parker foi saindo de cena, com uma saúde cada vez mais combalida. A marca Robert Parker ficou.

Nos últimos anos novos críticos surgiram – alguns oriundos de uma diáspora de profissionais que trabalharam com ele na própria Wine Advocate. Vários defendendo estilos de vinhos mais leves ou tradicionais. Nenhum com influência nem remotamente similar à que Parker teve e ainda tem. A internet fragmentou a geração e disseminação de conteúdo. Não há mais condições para alguém ocupar o trono de imperador.

A atual pluralidade de gostos e opiniões é provavelmente uma coisa boa. Mas a grandiosidade da carreira de Parker merece ser celebrada. De preferência, com um brinde do vinho mais concentrado e encorpado que você encontrar no fundo da adega. 

Ricardo Cesar é enófilo. Entre uma taça e outra, teve tempo de ser sócio-fundador e co-CEO do Grupo Ideal, a holding que administra a Ideal H+K Strategies e outras agências relações públicas, conteúdo, comunicação e marketing em sociedade com a WPP.