Crianças sabem ser cruéis. Nas histórias que gostam de ouvir, meninos e meninas apreciam quando os vilões são punidos com toda a violência que tentavam impingir a suas vítimas.
Já era assim nos contos populares coligidos pelos irmãos Grimm no início do século XIX. Na história de João e Maria, a bruxa da floresta morre queimada dentro do próprio forno. E no final menos conhecido de Branca de Neve, outra bruxa sofre um castigo terrível: é forçada a dançar até a morte, calçando sapatos de ferro em brasa.
Roald Dahl, o autor de Matilda e James e o Pêssego Gigante, sabia bem que a imaginação infantil é meio malvadinha. Isso fica evidente nas formas absurdamente perversas com que vão desaparecendo as crianças desagradáveis de A Fantástica Fábrica de Chocolate, sua obra mais famosa. No entanto, nada se lê sobre crueldade no site da Roald Dahl Story Company, a empresa que controla o rico espólio do escritor britânico.
Ali, ele é apresentado como um autor que se preocupava em fazer uma literatura “inclusiva” – o que não era uma preocupação típica da geração de Dahl (ele nasceu em 1916, no País de Gales, e morreu na Inglaterra, em 1990). Em nome da inclusão e de outros ditames do novo milênio, os editores fizeram várias mudanças nos livros infantis do autor, como a exclusão do adjetivo “gordo” e de outras palavras consideradas ofensivas.
Salman Rushdie e até o primeiro-ministro Rishi Sunak criticaram a censura às escolhas vocabulares de Dahl. Em resposta, a Puffin, o selo infantil da Penguin, anunciou que uma “coleção clássica”, com o texto original, seria publicada ao lado dos livros “corrigidos”.
Desde 2021 a Roald Dahl Story Company pertence à Netflix, que comprou a empresa. Mas a plataforma de streaming não teve nada a ver com a alteração (ou adulteração) da obra de Dahl, planejada desde antes do negócio ser fechado.
Agora, um fruto estranho acaba de nascer dessa árvore híbrida Netflix-Dahl.
Wes Anderson, o excêntrico diretor de Os Excêntricos Tenenbaums, filmou quatro contos não tão conhecidos de Dahl, que estrearam na plataforma recentemente.
Os maneirismos do cineasta americano – cenários teatrais, diálogos longos, personagens esquisitos – casaram-se bem com o humor seco e elegante do escritor galês. Nos quatro curta-metragens, as palavras de Dahl não são cortadas, mas valorizadas: há sempre um narrador lendo trechos extensos dos contos originais.
Em 2009, Anderson dirigiu uma bela animação em stop motion baseada em uma história infantil de Dahl, O Fantástico Sr. Raposo. Agora, ele trabalha com contos que Dahl escreveu para o leitor adulto – se é que essa distinção fazia diferença para a imaginação fantástica do autor.
A direção de arte abusa da paleta de cor pastel, outra marca de Anderson, e abdica de qualquer pretensão realista. Os cenários são desmontados e reconfigurados diante do espectador, e contra-regras entram em cena levando objetos para os personagens. Quando uma arma é disparada, é o ator que faz o barulho do tiro, gritando “bum”.
Nos quatro filmes, alternam-se seis atores principais, todos ingleses: Ralph Fiennes, Benedict Cumberbatch, Dav Patel, Ben Kingsley, Richard Ayoade e Rupert Friend. Às vezes, eles fazem mais de um papel no mesmo curta. Fiennes é o único que aparece em todos os filmes: ele interpreta o próprio Roald Dahl, que narra suas histórias na modesta cabana onde escrevia, em Great Missenden, vilarejo no sudeste da Inglaterra.
Primeiro e mais longo dos filmes (39 minutos), A Maravilhosa História de Henry Sugar conta a história de um milionário ocioso. Sugar (Cumberbatch) por acaso descobre que na Índia já viveu um homem que, pela prática da meditação, se tornou capaz de enxergar sem usar os olhos. O ricaço inglês dedica-se a aprender essa habilidade, mas não por razões espirituais: quer trapacear nos jogos de cartas.
Com quatro narradores, o curta repete a estrutura da ‘história dentro da história’ que Anderson empregou em seu mais recente longa-metragem, Asteroid City. Dahl começa a narração, que então é delegada para o próprio Sugar, depois para um médico indiano (Patel) e deste para Imdad Khan (Kingsley), o homem que enxerga sem os olhos. Sugar então retoma a narração, e Dahl tem a palavra final.
Essa sucessão de vozes compõe uma trajetória de inesperada transformação pessoal. Trata-se de uma história idealista, que aposta no autoconhecimento como caminho para a generosidade. Por contraste, nos três filmes seguintes a generosidade enfrenta a crueldade. E nem sempre vence.
Única história em que os protagonistas são crianças, O Cisne reconstitui as horas de terror e humilhação que o menino Pete Watson passa nas mãos de dois garotos mais velhos, um deles armado com uma espingarda. Asa Jennings, um ator infantil, encarna o esperto Pete, mas quem conduz a história é o narrador adulto interpretado por Rupert Friend. Os agressores de Pete nunca são mostrados: só a coragem e a inteligência do protagonista merecem aparecer em cena.
Ralph Fiennes faz uma caracterização sinistra do personagem-título de O Caçador de Ratos. Ele vive um exterminador dotado de uma compreensão íntima dos roedores que deve matar. Embora a violência do filme seja mais sugerida do que exibida (o único rato em cena é uma animação em stop motion), o final grotesco pode abalar estômagos sensíveis.
No quarto conto, Veneno, Cumberbatch retorna em uma interpretação estupenda, amparada quase só na expressão facial. Seu personagem é Harry, um inglês que vive na Índia ao tempo em que esta era uma colônia britânica. Ele passa quase todo o filme deitado de costas na cama, pois uma serpente venenosa se acomodou sobre seu abdômen enquanto ele dormia.
O mínimo movimento pode instigar a picada letal. Por sorte, Cook (Patel) visita o amigo Harry naquela noite – e tem a boa ideia de pedir socorro ao doutor Ganderbal (Kingsley), um engenhoso médico indiano.
O racismo imperialista é o tema subterrâneo dessa história tensa. Por ironia, Dahl era ele mesmo um racista impenitente. Seu desprezo só não se voltava contra os indianos: em uma de suas várias declarações antissemitas, o escritor afirmou que até “um canalha como o Hitler” – cujas forças ele combateu na Segunda Guerra, como piloto de caça – teria suas razões para perseguir os judeus.
Diretor cultuado pelo público hipster, Wes Anderson tem sido criticado por abusar da metalinguagem. Nos curtas da Netflix, porém, seu cinema mostra a que veio. A todo momento, a narração e a cenografia nos lembram que estamos diante de uma encenação, de um faz-de-conta. Mas isso não diminui o poder da ilusão cinematográfica: pelo contrário, só amplifica o encanto de quatro boas histórias contadas por seis atores.