Robert Higgs, economista e historiador norte-americano, em seu artigo “Ten Reasons Not to Abolish Slavery” apresenta uma série de argumentos vigentes no século XIX fundamentando a continuidade do regime escravagista.

Dentre as alegações, encontram-se desde questões históricas (a falácia de que a escravidão sempre existiu, sendo então entendida como normal ou tradicional) ou questões de devaneios paternalistas (tais como “os escravos não serem capazes de cuidar de si próprios, então é melhor – por questões humanitárias – que eles se mantenham sob a égide de seu Senhor).

Figurava também entre os argumentos uma visão utilitarista simplória do “mal menor”, afinal “escravos, se libertos, vão roubar, estuprar e matar” – portanto a manutenção do regime era sustentada como uma rede de proteção social.

No século XXI estas narrativas acima soam como estapafúrdias e indignas. Mas eram comumente aceitas pelas sociedades à época.

Contudo, mesmo para aqueles que possuíam uma visão crítica em relação à escravatura, havia dois “fortes” argumentos para a manutenção do sistema. O primeiro era a crença de que a acabar com a escravidão era impraticável e utópico, e, portanto, tal pleito não cabia nas mentes sensatas, apenas nas delirantes. O outro era uma questão econômica: afinal, como ficariam os meios de produção se fossem incorporados os custos associados ao emprego? Qual a competitividade das indústrias se fossem oneradas por um custo não praticado pelos seus pares?

O desenrolar desta história é de conhecimento público. Hoje revisitamos a história com repulsa, mas à época era prática corriqueira e infelizmente pouco percebida pela maioria dominante.

Cabe a questão: por que é tão fácil e evidente reconhecer situações passadas como a acima apresentada ao mesmo tempo em que cometemos exatamente os mesmos erros no presente? Essa incoerência muitas vezes é explicada pela dissonância cognitiva, conceito que explica práticas destoantes daquilo que acredita ser correto.

A mudança climática é um dos nossos maiores desafios contemporâneos. Aqueles que ainda classificam o assunto como uma questão ambiental estão muito longe de entender suas consequências. A mudança climática mata – e em larga escala. A mudança climática empobrece. A mudança climática acentua desigualdades. A mudança climática torna a vida em algumas regiões impraticável e, literalmente, leva alguns países a sumirem do mapa.

Em face disso, é importante ressaltarmos que o carvão é responsável pela maior parte da poluição por carbono nociva para o clima. A eliminação gradual e a suspensão dos investimentos neste segmento constituem o passo mais importante para limitar o aquecimento do planeta a 1.5oC, conforme estabelecido no Acordo de Paris, e assim evitar impactos mais agudos.

Segundo recomendação do IPCC – Painel Intergovernamental sobre Mudanças do Clima – o principal órgão promotor da ciência acerca do assunto, faz-se necessário o compromisso claro de eliminar o uso do carvão e pôr fim aos subsídios para combustíveis fosseis. Infelizmente, por termos procrastinado a realização de ações responsivas à despeito dos alertas da ciência, tal transição tem de ser necessariamente rápida: a utilização global do carvão na produção de eletricidade deve diminuir em 80% até 2030; os países da OCDE devem eliminar integralmente o uso do carvão também até 2030 e absolutamente todas as centrais do carvão devem ser encerradas até 2040.

Portanto, a manutenção do uso do carvão é injustificável, intolerável e, à visão de muitos, criminoso.

Nos parece óbvio e ululante que o caminho para eliminação do mesmo não virá desacompanhada de prantos daqueles que tem interesse econômico no assunto ou desinteresse no bem coletivo.

O uso de narrativas e subterfúgios para justificar o injustificável não é fenômeno único ou isolado. Assim como fizemos referência aos argumentos escravagistas no início deste artigo, foi assim com o lobby do tabaco e não seria diferente com os fósseis.

Neste sentido, o Brasil tem um desafio muito menor do que outros países. Nos EUA, o carvão representa 20% das fontes de energia, na Europa 15% e no Brasil apenas 3% – embora em franco crescimento e sem qualquer compromisso firme de transição desta fonte. Desta forma, nos parece evidente que o Brasil está em condições de ser mais ambicioso do que outras geografias.

Os países do G7 se comprometeram a interromper os subsídios públicos para a geração térmica a carvão, em face à necessidade da descontinuidade da atividade. No Brasil, infelizmente, estamos no sentido oposto: os subsídios para a indústria do carvão somam cerca de R$ 700 milhões anuais na CDE (Conta de Desenvolvimento Energético).

Ressalte-se que o Brasil enquanto nação não opera usinas a carvão, quem o faz são empresas. Portanto, embora o carvão seja pouco representativo na matriz energética nacional, é altamente representativo na capacidade instalada de algumas empresas, como por exemplo a Eneva onde o carvão representava absurdos 26% de sua matriz antes da companhia adquirir a Focus Energia, focada em renováveis. Em que se pese que a aquisição dilua o percentual do carbono na matriz da companhia no olhar relativo, no absoluto segue causando as mesmas externalidades anteriores: o planeta não olha percentuais.

Isto posto, causou-nos surpresa a defesa apaixonada da empresa Eneva e suas operações de carvão em recente relatório publicado por uma tradicional gestora de recursos.

A carta em questão inicia propondo que a questões ESG sejam complexas e, portanto, devam ser tratadas como tal. Contudo, faltou ater-se àquilo que foi proposto.

Na verdade, logo de partida, a gestora insere ESG no mesmo balaio de “pipes, dividendos, small caps, compounders, tecnologia e metaverso”, como se ESG fosse uma classe de ativos ou uma estratégia, e não um framework que deva ser utilizado para todas as classes de ativos e estratégias. A errônea compreensão do ESG tem um aspecto perigoso no momento em que estamos, a nível nacional, ainda imaturos no tema.

No decorrer do relatório, apresenta-se uma visão pragmática da temática empurrando para escanteio a visão daqueles que contestam o uso do carvão, como se estes fossem levianos e estridentes. Será que não é o contrário?

É importante ressaltar que a queima do carvão para obtenção de energia produz efluentes altamente tóxicos, a partir da liberação de metais pesados como o mercúrio, arsênio e chumbo.

O relatório apresenta cálculos detalhados sobre o custo financeiro de descomissionar a operação a carvão – apesar de não parecer incluir nos cômputos os subsídios de R$ 700 milhões por ano, supracitados. Conclui-se então que é economicamente inviável a eliminação do mesmo.

Contudo, há no mínimo dois problemas nesta aritmética. O primeiro é a base comparativa: seria mais correto comparar o custo de descomissionar as operações com os custos impostos pelas mudanças climáticas em todas as suas vertentes. Mas, é obviamente vantajoso para a companhia não incorrer no custo de descomissionamento da operação uma vez que o custo da mudança climática não é pago pela companhia: um clássico problema de moral hazard: privatiza-se os lucros e socializa-se os prejuízos.

A segunda questão diz respeito à própria essência ESG que, ao contrário de um conjunto de práticas como ele é normalmente referido, trata de colocar o stakeholder no centro das decisões e não mais o shareholder. Portanto, a conta aritmética é infiel aos princípios ESG, uma vez que enxerga exclusivamente a ótica do acionista, mas não os efeitos da operação de carvão em stakeholders relevantes tais como os colaboradores, as comunidades no entorno, o meio ambiente e a saúde do planeta. Tais atores foram ignorados na equação como se nada fossem onerados na manutenção da operação de carvão.

O relatório também apresenta uma dicotomia falaciosa, como se existissem apenas duas alternativas possíveis: a manutenção das operações de carvão ou a venda da mesma para um agente irresponsável, induzindo o  leitora concordar com a manutenção da operação. Seriam essas as únicas alternativas?

Segundo recente manifesto assinado pela WWF-Brasil, Associação Brasileira do Biogás, DIEESE, Fórum Brasileiro de Mudança do Clima, Instituto Clima e Sociedade, Observatório do Carvão Mineral, Idec – Instituto de Defesa do Consumidor entre outros, “diversos estudos mostram que a evolução do sistema pode prescindir das térmicas e que a geração a gás – na maioria dos casos – é mais competitiva que à carvão, que inclusive depende de subsídios para se viabilizar”. O mesmo manifesto sugere alternativas como biomassa, biogás ou gás natural para atender os requisitos à confiabilidade do sistema.

Ou seja, há alternativas claras para uma transição responsável. Manter ou vender para um vilão irresponsável não são as únicas alternativas existentes, como o texto sugere. Ainda que se opte pela venda, a escolha da contraparte caberia apenas à Eneva e poderia ser condicionada a um plano de transição e descomissionamento. Esta venda condicionada teria impacto em preço? Sim. Mas aqui estamos tratando de dinheiro ou de responsabilidade?

Demorou décadas para que o debate da mudança climática fosse desinterditado no âmbito do mercado financeiro. É saudável ao planeta e ao próprio mercado que este debate ocorra a pleno, na busca de alternativas factíveis que sirvam aos interesses da sociedade.

O olhar pouco empático ao entorno, aquele que busca interesses privados em detrimento do coletivo é ainda predominante, infelizmente. Mas é necessário chamar esta atitude pelo nome, pois travesti-la de sustentável é tão incoerente e constrangedor quanto aqueles que encontravam narrativas para defender a escravatura.

Em tempo: nenhuma comparação está sendo feita entre escravidão e uso de carvão, embora ambos sejam intoleráveis. A analogia cabe à passividade e complacência diante do injustificável a partir de alegações estapafúrdias.

Convenhamos, as mentes utópicas de outrora não eram tão delirantes assim. Eram?

Fabio Alperowitch é o fundador da FAMA Investimentos.

 

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