A vida é sempre muito frágil e breve, não importa quantos anos alguém viva.  E quando uma pessoa se vai aos 75 anos, jovem para os parâmetros atuais, ainda produtiva, lúcida, sempre inteligente e com um senso de humor implacável? O que isso nos faz sentir e pensar?

10387 1a78926f e5d7 0006 0000 55a8f8581621Régis Bonelli foi um economista importante e um ser humano espetacular.

Um estudioso da indústria brasileira, de temas como produtividade, crescimento econômico e investimento em infraestrutura, era doutor em economia por Berkeley, foi pesquisador do IPEA, professor da PUC, economista do IBRE, visiting scholar em Oxford, diretor do BNDES e do IBGE.  Sua lista de credenciais só não é mais longa que seu rol de amigos, todos devastados pela notícia de sua morte nessa última quarta-feira, após uma batalha de quatro meses com o câncer.

Sua parceria com Pedro Malan, que durou décadas, teve um de seus pontos altos no artigo “Os limites do possível”, de 1976, que investigava os dois grandes desequilíbrios da economia brasileira na época — balanço de pagamentos e inflação persistente — com uma abordagem pouco utilizada na época pelos economistas brasileiros. A maioria dos analistas continuava interpretando estes dois desequilíbrios como consequências da melhor ou pior gestão da política econômica de curto prazo. Malan e Bonelli mostraram que a natureza do problema era mais estrutural.

Conheci Régis no verão de 1991, quando eu já havia terminado os créditos do mestrado na PUC e escrevia a tese sofrida. Régis precisava de um assistente de pesquisa num estudo sobre o setor siderúrgico. Conversei com ele e aceitei a tarefa, que durou janeiro e fevereiro. 

Foi durante aqueles dois meses que realmente comecei a pensar como economista. As conversas diárias, os ensinamentos sobre como analisar, as orientações inteligentes, generosas e divertidas tornaram aquele trabalho uma experiência inesquecível. Falávamos dos dados, das regressōes, dos textos que havia que consultar… mas também sobre literatura (li Ian McEwan, pela primeira vez, por sua recomendação), música, filmes (Régis ia ao cinema pelo menos duas vezes por semana, naquele tempo), viagens, fazer doutorado fora. A vida em geral.

Num mundo cada vez mais rápido e pasteurizado, não se fazem mais mentores assim.

Mansueto Almeida, hoje no Governo, escreveu em seu blog:  “Na minha convivência com o Regis, nas minhas várias viagens ao Rio de Janeiro, aprendi muito com as suas exposições e seus textos. Tinha um enorme senso de humor e me ensinou que o debate econômico pode ser feito de forma elegante, algo que é cada vez mais difícil em um mundo no qual as pessoas estão se tornado excessivamente radicais, algo que não combina com o bom debate econômico e nem com a tolerância necessária para a formação de consensos.”

Um dia, depois de montar várias bases de dados e rodar não sei quantas regressões, Régis me disse: escreve um texto sobre o que a gente fez e descobriu até agora. Deu-me algumas instruções sobre o conteúdo, e passou a bola para mim. Entreguei-lhe o texto, com as respectivas tabelas, numa sexta-feira. Na segunda pela manhā, recebeu-me em sua sala: “Está muito bom o texto, muito bom mesmo. Eu fiz algumas pequenas modificações, por esta e aquela razāo, mas você está de parabéns, pois o texto está excelente”.

As cerca de 15 páginas haviam sofrido umas 20 alterações (por página!), todas em vermelho. Espantada, perguntei: “Mas você achou bom mesmo? Tem tantas correções…” E ele, muito tranquilo e suave:  “Foi só para melhorar um pouco a forma, mas o conteúdo foi mantido. É todo seu…”

Régis era assim: gentil e sensível ao outro, encharcado de generosidade.

Nosso pequeno mundo da economia — cheio de gente idealista e correta — sentiu profundamente a perda deste grande amigo. Sou apenas mais uma dentre tantos órfãos e órfās.

No momento em que o Brasil mais precisa de suas melhores cabeças e de seus maiores corações, Régis fará uma falta danada.

Leda Hahn é economista.