Logo após a queda do comunismo na Europa, novas fronteiras foram traçadas no mapa do Velho Continente. Repúblicas soviéticas como a Ucrânia ganharam a independência, a Tchecoslováquia dividiu-se em duas, e a Iugoslávia fraturou-se em sete nações.

Só uma linha foi apagada: aquela que separava a República Federal da Alemanha (RFA), a oeste, da República Democrática da Alemanha (RDA), a leste.

Foi um processo bem mais acidentado do que fazem supor as imagens de felicidade que o mundo viu na queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989, e na festa da reunificação, em outubro do ano seguinte.

Um documentário alemão de 2020 — um tanto esquecido no meio da linha industrial de produções da Netflix — mostra como foi difícil a conversão da metade comunista do país em uma economia de mercado. Uma Morte em Vermelho examina, em quatro capítulos, um episódio violento daquele período: o assassinato de Detlev Karsten Rohwedder, o homem que Helmut Kohl, o primeiro chanceler do país reunificado, encarregou de privatizar as sucateadas empresas da Alemanha Oriental.

Com experiência anterior como executivo do conglomerado químico Hoesch, Rohwedder aceitou a pesada missão de presidir a Treuhandanstalt (ou apenas Treuhand), a agência com sede em Berlim criada em 1990 para reestruturar e vender 8.500 empresas estatais. Na noite de 1o de abril de 1990, um dia depois da Páscoa, Rohwedder estava de folga em sua casa em Düsseldorff. Oculto na escuridão do parque em frente, o assassino esperou o momento certo, o rifle em punho: quando o alvo se aproximou da janela do escritório, no segundo andar, disparou três vezes. O tiro fatal foi o primeiro, que atingiu Rohwedder nas costas. A segunda bala feriu sua mulher, e a terceira se alojou em uma estante de livros.

Na parque, o assassino deixou uma carta da Fração do Exército Vermelho (RAF, na sigla em alemão). Muito ativa na década de 1970, quando também era conhecida como Grupo Baader-Meinhof, esta organização terrorista ainda realizou atentados de alta repercussão no início dos anos 1990. Além de Rohwedder, foram mortos os presidentes da Siemens e do Deutsche Bank.

A RAF reivindicou responsabilidade, mas os autores destes crimes nunca foram descobertos – para vergonha das forças de segurança alemãs, que também negligenciaram a proteção a Rohwedder. Na sua casa, só os vidros do andar térreo haviam sido blindados.

Em 1993, a polícia esteve perto de capturar Wolfgang Grams, que evidências de DNA apontavam como suspeito da morte de Rohwedder, mas a operação, mal planejada, resultou na morte de Grams e de um policial.

Rohwedder não era popular entre os alemães do Leste, e isso é compreensível. Entrevistado no documentário, Deltlef Scheneut, ex-diretor da Treuhand, diz que a economia da RDA tinha os dias contados: “Se o muro de Berlim não houvesse caído, em menos de cinco anos tudo teria implodido”. Mas ele reconhece que o resultado imediato das políticas implantadas por Rohwedder não foi positivo. Milhões de trabalhadores perderam empregos que consideravam estáveis.

Os militantes da RAF viram em Rohwedder o demônio de sua teologia de extrema esquerda: o capitalista. Dois ex-terroristas do grupo são entrevistados em Uma Morte em Vermelho, Silke Maier-Witt e Lutz Taufer (que já viveu no Brasil, atuando em projetos sociais em favelas).

Ambos cumpriam pena ao tempo em que Rohwedder foi morto e têm pouco a dizer sobre o caso. Mas seus depoimentos permitem vislumbrar a mentalidade radical da RAF. Nos anos 80, procurada pela polícia da Alemanha Ocidental, Silke Maier-Witt refugiou-se no Leste, e ainda hoje demonstra nostalgia pelo modo de vida comunista: “Nos supermercados da Alemanha Ocidental, encontrávamos 50 ou 60 tipos de iogurte. Quem precisa disso? Na Alemanha Oriental, tínhamos iogurte de morango e natural, e bastava”.

Muito bem editado, Uma Morte em Vermelho envolve o espectador em uma tensa narrativa policial, com reconstituições de três hipóteses distintas de como o crime teria ocorrido. Só é de se lamentar que a última reconstituição apresente um cenário fajuto: uma hipótese conspiratória sem qualquer lastro na realidade, segundo a qual forças ocultas do governo alemão teriam matado Rohwedder para desmoralizar e desmobilizar os protestos contra a Treuhand.

“Rohwedder foi um mártir da reunificação alemã,” diz no primeiro episódio Theo Waigel, secretário da Fazenda no governo Kohl.

Com problemas e tropeços, a antiga RDA veio a compartilhar da prosperidade da Alemanha reunificada. Ainda é a parte mais pobre do país, mas a distância está diminuindo: nos últimos anos, o Leste tem ficado em torno de 2% acima do Oeste no nível de desemprego – a diferença já chegou a 10% na virada do milênio. Rohwedder sacrificou-se por uma boa causa.