1. Precatório é um pequeno “esqueleto”, para usar a terminologia consagrada, só que rotineiro e em grande quantidade. Nem sempre são todos pequenos, mas são criaturas da mesma família: a das obrigações que não estavam na conta.

2. Como se trata de elevação de dívida por conta de reconhecimento (judicial) de contingência passiva — eis uma definição técnica — o precatório está, como se diz, “debaixo da linha”, e portanto não faz parte da “despesa primária” de que fala a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu o Teto de Gastos. 

3. Uma despesa adiada, em troca de algo que você desfrutou, é uma dívida. Diferimento de pagamento é endividamento, simples assim.

4. Isso pode não ser claro para muitos pois, nos últimos anos, as despesas pertinentes a sentenças judiciais têm sido alocadas pelo Tesouro aos assuntos originários: sentença decorrente de assunto previdenciário vira despesa previdenciária, sentença tendo que ver com salário ou desapropriação é alocada na respectiva rubrica de despesa primária, ainda que haja uma década ou mais de “diferimento” da despesa. Foi por conta desse método, até hoje adotado, que os precatórios ficaram associados indevidamente à despesa primária. Como imaginar que um “diferimento” de mais de uma década não seja considerado um endividamento?

5. Bem, mas onde mesmo está definida a composição da “despesa primária” de que fala a EC95, a famosa “PEC do Teto”? É autoexplicativo, como, no passado, foi o “juro real”? Ou teria que ser definido na famosa lei complementar das finanças públicas que nunca foi feita? 

6. A Lei de Responsabilidade Fiscal fala em “resultado primário” (art. 4), mas remete o assunto (inclusive “memória e metodologia de cálculo”) aos anexos das Leis de Diretrizes Orçamentárias de cada ano.

7. A própria EC95 “exemplifica”, com o intuito de esclarecer, e acaba criando um “extra-teto”: no art. 107, §6º, listam-se as coisas que “não fazem parte da base de cálculo” (incisos de I a IV), e é aqui que mora o perigo. O que significa “não fazer parte da base de cálculo”? São as despesas primárias meritórias que não ocorrem todos os anos (despesas com eleições, capitalização de estatais não dependentes, mas não apenas essas, segundo se presume), e algumas despesas primárias “especiais” (FUNDEB, e talvez outras, também especiais)? É neste rol que devem estar as despesas que parecem, mas não são despesas primárias (precatórios)? 

8. É curioso que essa lista não exclua despesas com juros e amortizações da dívida pública, por exemplo, como se estivessem muito claras as fronteiras exatas da “despesa primária”. Mas onde está essa definição? Em que manual? O que diz esse manual sobre os casos híbridos, como os precatórios?

9. Caberia, portanto, na EC95, a lembrança de que precatórios são dívida e não despesa primária, e que não deveria estar sujeito a Teto. Há uma PEC exatamente com esse desenho (reconhecer que os precatórios pertencem às exceções elencadas no art. 107, §6º). O problema é manter aberta a janela para o “extra-teto”. 

10. Quando se debateu o assunto dos “esqueletos”, no passado, uma dúvida era se o reconhecimento de uma dívida em certo momento deveria implicar em alterar retroativamente o cálculo dos déficits/superávits primários dos anos anteriores. A solução encontrada foi de criar uma conta especial para acomodar o prejuízo, intitulada “ajuste patrimonial”, que seria sensibilizada em contrapartida ao reconhecimento de um “esqueleto” (e correspondente acréscimo à dívida pública). Com isso não foi necessário alterar as contas primárias “para trás”.

11. A solução simples para o nó dos precatórios seria reconhecer que precatório é dívida e não despesa primária. Simples assim. Será preciso uma PEC para isso? 

12. O que certamente não pode acontecer é aceitar que o precatório é uma dívida pública de segunda classe, e que o governo pode e deve espernear para pagar. Só pode haver esperneio antes da coisa julgada, não depois. Não há esperneio com a dívida mobiliária. E no caso dos precatórios, o credor não teve a opção de não contratar essa dívida: o credor teve que brigar durante muitos anos para ter seu crédito reconhecido, e Brasília ainda acha que não tem que pagar, ou se acha no direito de parcelar. Reescalonar, racionalizar, reordenar: são muitos os eufemismos para o calote do calote. 

13. Na verdade, reconhecer que precatório é dívida não é “excluir do teto”, mas admitir que já estava fora, ou que nunca esteve dentro. As despesas com a dívida pública não são despesas primárias e o teto é de despesa primária, não de dívida pública. 

14. O Estado pode se financiar vendendo títulos e pagando suas contas em dia, ou atrasando as contas para pagar depois, brigando na Justiça. São duas maneiras de se endividar, a primeira mais limpinha.

15. O problema passa ser o entendimento adotado anteriormente pelo qual se tratou despesa de precatório como se fosse despesa primária para o cálculo do (espaço abaixo do) teto. Foi um entendimento errado, passou despercebido, não teve consequências (pois estávamos bem abaixo do teto) mas é preciso revisitar (agora que o teto está chegando).

16. As dificuldades nesse assunto começam exatamente quando o governo acha que precatório não é dívida, como as NTNs e LFTs, mas apenas uma despesa que pode escolher deixar para depois, ou pagar só um pedaço. Não é assim que funciona. Seria o calote sobre o calote.

17. O STF definiu como inconstitucionais outras tentativas anteriores de parcelar o débito ou de o Estado se apropriar do desconto que o credor aceitaria para evitar o pesadelo. O STF impediu que o governo se apropriasse dos efeitos econômicos “de sua própria torpeza” (ao demorar duas, três ou quatro décadas para pagar uma conta) e se financiar em cima de seus clientes e fornecedores.

18. Não há problema prático em parcelar o pagamento, e o jeito simples é o de pagar com um título da dívida pública, uma NTN, como se fez com os “esqueletos”. Alguns desses eram tão grandes que foram feitas séries especiais de NTNs para o seu pagamento. Com isso o pagamento era naturalmente “parcelado” (segundo os termos das NTNs) e o credor, se quisesse, podia negociar o papel com deságio, em seu desfavor (e a favor de quem compra o papel). É sua opção. O problema dessa fórmula é o impacto contábil sobre as contas públicas e para o “primário” em particular.

19. No passado esses ajustes referentes a “esqueletos” foram muito expressivos. A tabela mostra os 10 maiores esqueletos do período 1996-2003, e o que representariam em nossos dias.

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20. Os valores para precatórios, em nossos dias, são de uma ordem de grandeza inferior, embora expressivos em seu conjunto. No passado a opção simplificadora foi a de não sensibilizar o primário de anos anteriores ao reconhecimento do problema, daí a importância da conta “ajuste patrimonial”, que ainda existe como foi criada. Por que essa fórmula não foi adaptada para os precatórios?

21. O problema é que se aceitarmos agora que os precatórios não fazem parte do Teto, segue-se que há mais espaço para gasto agora do que se imaginava, pois teria havido menos despesa primária do que contabilizamos. 

22. O problema passou a ser o de usar o espaço fiscal recém-descoberto, que a Instituição Fiscal Independente (IFI) calcula em R$ 48 bilhões. O governo quer um novo “bolsa família”, ou uma nova rodada de “auxílio emergencial”, e o Congresso pode querer outras coisas. Entretanto, não se pode esquecer que a existência de espaço debaixo do teto não significa a existência da fonte dos recursos. Caímos em um problema “orçamentário” muito politizado a ser resolvido em um ambiente muito envenenado.

 

Gustavo Franco é ex-presidente do Banco Central.