Os franceses não fazem a menor questão de ganhar um pouco mais de dinheiro se tiverem que ralar algumas horas a mais no trabalho e sacrificar a joie de vivre. Também não estão dispostos a adiar a aposentadoria, como demonstraram nas manifestações dos últimos dias em Paris. 

Milhares de citoyens estão saindo às ruas todos os dias em protesto contra o projeto de reforma do presidente Emmanuel Macron, que prevê uma elevação gradual – gradualíssima, na verdade – na idade mínima de aposentadoria. 

Para receberem os valores integrais dos benefícios, os franceses precisam trabalhar até os 62 anos. Na reforma de Macron, a idade subirá gradativamente até alcançar 64 anos em 2030. Além disso, para terem direito ao valor integral do benefício, os trabalhadores terão que comprovar 43 anos de contribuição previdenciária.  

10130 44335a34 50ef 0006 0008 4185e9e5120cHoje, as contas do sistema previdenciário francês são relativamente equilibradas. A foto é OK. 

Mas o aumento da expectativa de vida e a diminuição do número de contribuintes revelam um filme mais complicado adiante, com um déficit que deverá superar € 10 bilhões a partir de 2027 e seguir em trajetória ascendente se nada for feito. 

(Nota: no Brasil, o saldo ficou negativo em mais de R$ 360 bilhões em 2022, incluindo as contas do INSS e das aposentadorias especiais dos militares e do funcionalismo público.) 

Os franceses que saem às ruas para protestar não querem dos argumentos cartesianos dos técnicos. As pesquisas de opinião mostram que a grande maioria do eleitorado desaprova a reforma. E ponto final. Todos os sindicatos se posicionaram contra o projeto. 

“Eles imaginam que, se suspendermos a reforma, o déficit também será suspenso,” Olivier Dussopt, o ministro do Trabalho, ironizou numa entrevista na TV. 

A revolta da população explodiu depois que Macron recorreu a um expediente legal – mas considerado pouco democrático – para empurrar a reforma goela abaixo dos franceses.

 

A reforma passou no Senado, na semana passada, por 193 votos a favor e 114 contra. Mas temendo não ter o apoio necessário na Assembleia Nacional, Macron impôs a reforma sem a aprovação dos parlamentares, utilizando para isso o artigo 49.3 da Constituição, um dispositivo destinado a superar impasses e contornar crises. 

Indignados, os franceses atearam fogo em bonecos do presidente e de seus ministros. No sábado à noite, ao redor de uma fogueira, os manifestantes entoavam: “Nós decapitamos Luís XVI! Macron, podemos fazer isso novamente!”

 

A única maneira de reverter a decisão de Macron é com a derrubada do governo. Foi isso que tentaram os parlamentares de oposição, ao apresentar duas moções de censura. Mas o presidente sobreviveu às votações, que aconteceram hoje. Em uma delas, foi apertado: faltaram apenas 9 votos para colocar sob ameaça o gabinete comandado pela primeira-ministra Elisabeth Borne.

Os franceses devem continuar nas ruas e haverá mais protestos e greves nos próximos dias. Em várias regiões de Paris, o lixo vai se acumulando, por causa da paralisação dos garis. Quelle horreur

Macron já havia tentado aprovar uma reforma previdenciária em 2019. Naquela ocasião, o projeto era diferente. Previa acabar com 42 regras de aposentadorias existentes no país, e que beneficiam categorias como professores e ferroviários. A proposta foi abandonada em meio à pandemia. 

Agora, o governo partiu para um ajuste mais amplo, que, diga-se, aproxima a França das regras existentes no resto da Europa.

O total de gastos previdenciários alcança 14% do PIB, atrás apenas da Itália. O sistema italiano aparece no topo da generosidade, mas as finanças públicas não são exatamente um exemplo a ser seguido. 

Os aposentados franceses recebem o equivalente a 74% de seus salários nos tempos de ativa – semelhante ao brasileiro, aliás. É um percentual bem acima da média da OCDE e da União Europeia.  

O governo francês argumenta que não será possível manter o equilíbrio do sistema se não houver um ajuste o quanto antes. Em 2000, havia 2,1 contribuintes para cada aposentado. Em 2020, o número caiu para 1,7. Até 2070 deverá recuar para 1,2. 

O número de beneficiados deverá subir dos atuais 16 milhões para 21 milhões nas próximas três décadas. A dívida pública do país já supera 110% do PIB.   

Há razões de sobra para Macron defender a reforma. Quer evitar que os franceses enfrentem em breve os problemas que atingem italianos e gregos. 

A questão está na maneira como decidiu levá-la adiante, passando por cima do Parlamento, sem diálogo com a população e correndo o risco de ver ruir a legitimidade de seu governo.

Pas bon!