São Paulo está reabrindo os shoppings antes dos parques, e os barzinhos dois meses antes da escola.

O que isso diz sobre a qualidade da nossa política pública — e a sociedade que queremos ser — num dos momentos mais delicados de nossa História?
  
Creches e escolas foram alguns dos primeiros lugares a serem fechados durante a implementação de medidas para a contenção da covid-19 no Brasil. Esta estratégia também foi implementada em outros países, embora o fechamento de instituições de ensino não tenha sido feito de forma semelhante por todos.

Inicialmente, a decisão de fechamento geral das escolas era justificável devido à incerteza sobre o risco potencial para as crianças — em particular devido ao fato de que infecções por influenza são comuns e potencialmente graves nesta faixa etária. 

No entanto, dados disponíveis dos primeiros países acometidos pela pandemia demonstram claramente que o risco de complicações em crianças (como internações e óbitos) é extremamente baixo. Por exemplo, nos Estados Unidos a taxa de internação de pessoas até 17 anos por covid-19 não chega a 0,04%, o que é muitas vezes menor que o risco de complicações associadas à gripe para uma criança da mesma faixa etária durante o inverno.

Até mesmo a transmissão da covid-19 por crianças é menos importante do que muitos imaginaram inicialmente. Apesar de estar claro que crianças não possuem mais imunidade contra a covid-19 do que os adultos, a chamada “taxa de ataque”, que representa o risco individual de se contrair a doença, é muito mais baixa nas crianças. Além disso, também está claramente documentado que o risco de transmissão da covid-19 por crianças infectadas é menor do que o risco de transmissão por adultos infectados, mesmo em casos com a mesma carga de vírus.
 
Considerando-se que o risco associado à covid-19 para a população infantil é bastante reduzido, os governos deveriam reavaliar com urgência o fechamento prolongado das escolas, já que este está associado a riscos e prejuízos que podem gerar dano irreversível. Existe farta literatura médica mostrando risco elevado de violência, abuso sexual, uso de drogas e depressão em crianças sem aulas.
 
Em primeiro lugar, existe claro prejuízo no aprendizado infantil. Mesmo com uma estrutura de compensação de carga horária, dificilmente será possível recuperar o conteúdo e aprendizado perdido durante o tempo parado. Mesmo as crianças que tem acesso a ensino remoto por plataformas digitais não costumam ter o mesmo rendimento que teriam no ensino presencial, particularmente para os grupos de menor idade. E na dura realidade do ensino público brasileiro, particularmente nas cidades do interior, o uso de plataformas digitais é incipiente e o acesso a dispositivos eletrônicos e conexão de internet com qualidade suficiente para acompanhar aulas e realizar pesquisas na internet é bastante limitado.
 
Outros dados sugerem que fora do período escolar, como durante as férias, crianças de famílias de alta renda tem ganho no aprendizado pelos estímulos externos a que são expostos pela família, enquanto o oposto ocorre com crianças de baixa renda. A combinação destes fatores arrisca aumentar ainda mais a disparidade de aprendizado por diferenças socioeconômicas, com prejuízo claramente concentrado nas famílias de baixa renda.
 
Embora a função primordial das escolas seja a educação formal, é indiscutível que a função social da escola é muito mais ampla. Dentre as crianças de baixa renda, as escolas também são responsáveis por pelo menos uma das refeições diárias, e em muitos locais esta é a principal refeição para um grande número. Apesar de as prefeituras estarem distribuindo cestas básicas e auxílio social de forma temporária, a função das escolas na nutrição infantil não pode deixar de ser destacada.
 
Para uma avaliação completa da função social das escolas é preciso compreender que o impacto do seu fechamento vai além do impacto acadêmico e na merenda. A escola é um ambiente que garante a segurança física e social das crianças enquanto os pais ou responsáveis vão ao trabalho. Considerando que grande parte da população em idade economicamente ativa tem filhos em idade escolar, não é possível um retorno estruturado da economia sem que os pais possam deixar as crianças em segurança na escola. Para grande parte das famílias, o custo de um cuidador ou babá para as crianças tornaria impossível o retorno ao trabalho. Isto sobrecarrega desproporcionalmente as mulheres e já se fala em regressão de uma década ou mais no progresso atingido por elas no mercado de trabalho. 
 
Por fim, a escola tem uma função educacional durante a pandemia que ultrapassa a educação infantil. As crianças têm grande influência sobre a atitude dos pais, e a escola pode ser uma oportunidade única de educação sobre medidas preventivas e terapêuticas para controle epidemiológico da covid-19. No contexto de notícias falsas e disseminação de informações não confiáveis, a escola é um meio de transmissão de informações adequadas e relevantes para a família. 
 
Obviamente, a reabertura das escolas não é simplesmente um retorno à normalidade anterior. É necessário fornecer equipamentos de proteção individual, orientar os profissionais que trabalham na escola, adaptar os espaços físicos para reduzir riscos e educar pais e familiares. Deve-se lembrar que mesmo as crianças sendo de menor risco, os profissionais que trabalham nas escolas e seus pais devem seguir todas as orientações das autoridades sanitárias.
 
Não é razoável que a reabertura das escolas não seja a maior prioridade de todo o processo de reabertura da sociedade e do retorno das atividades. 

Marcio Bittencourt é médico pela Universidade Federal do Paraná, mestre em saúde pública por Harvard, médico do centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica do Hospital Universitário da USP e professor da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein.

Jandrei Rogério Markus é médico pediatra e infectopediatra pela Universidade Federal do Paraná, mestre e doutor em Saúde da Criança e do Adolescente pela mesma universidade e professor titular da Universidade Federal do Tocantins.