Em sua 111ª versão, o Tour de France é hoje um dos maiores, senão o maior, evento desportivo do mundo – no qual o esforço sobre-humano dos atletas, as táticas das equipes, investimentos em tecnologia, análise de dados e desempenho, ciência e nutrição criam um dos espetáculos mais emocionantes do planeta.
Este ano, pela primeira vez, o Tour de France partiu da Itália, passando pelas belas regiões da Toscana e Emília-Romanha para iniciar suas 21 etapas totalizando 3.498 quilômetros com cerca de 52.250 metros de altimetria. Com uma novidade. Em função das Olimpíadas, a última e prestigiada etapa não se encerrará nos Champs Elysées, o sonho de qualquer velocista, e sim na (não menos bela) Riviera Francesa.
Trata-se de uma das competições esportivas mais extenuantes do mundo, com etapas de cerca de 200 km por dia, exigindo um esforço físico e mental extraordinário dos ciclistas. Durante as etapas planas, os ciclistas frequentemente mantêm velocidades altíssimas, que podem chegar a mais de 70 quilômetros por hora, competindo em sprints finais que exigem explosão e potência. Nas etapas de montanha, a capacidade de manter um ritmo constante e forte em subidas longas e íngremes é crucial. Resiliência ali é tudo. Nas descidas, as velocidades e os riscos chegam a ser incalculáveis, e os acidentes podem ser fatais. Somam-se a isto as condições climáticas enfrentadas e as etapas de “contra-relógio”.
A pressão psicológica também é enorme, com a necessidade de estratégias complexas, trabalho em equipe e resistência mental para lidar com a dor, a fadiga e a competição acirrada. Aliás, a resistência à dor acaba se tornando o diferencial dos vencedores.
Este ano, as emoções em busca da Camisa Amarela – Maillot Jaune – ou seja, a liderança na classificação geral, não podiam ser maiores. A disputa entre Tadej Pogačar, da Equipe UAE, e Jonas Vingegaard, da Visma Lease Bike, fazem da competição quase um Federer-Nadal, Celtics-Lakers ou Fla-Flu. Este ano teremos o desempate. Foram duas vitórias para cada nas últimas quatro edições.
A emoção não para aí: a busca pela prestigiada camisa verde para o melhor velocista (os sprinters); a camisa branca com bolinhas vermelhas para o melhor escalador; a camisa branca para o melhor jovem ciclista; e as eletrizantes perseguições do pelotão à “fuga”, os ciclistas que arriscam a vitória desgarrando-se do pelotão principal quilômetros antes da chegada, tiram o fôlego até de quem assiste.
Nesse final de semana entraremos na última semana da competição. Até aqui vimos a vitória de dois franceses nas primeiras etapas em fugas sensacionais, — um deles em sua primeira participação no Tour e outro em sua última.
As três vitórias de Biniam Girmay, nascido na Eritréia, as primeiras vencidas por um ciclista negro, e, além de tudo, em uma equipe que jamais havia conquistado qualquer etapa na competição. A tão esperada vitória do inglês Mark Cavendish que, aos 39 anos, com sua 35ª vitória em uma etapa do Tour de France, tornou-se o maior recordista de todos os tempos.
Apesar do alto nível de profissionalismo e dos investimentos tecnológicos e toda uma infraestrutura de apoio, há um caráter de simplicidade e camaradagem no Tour de France que resgata valores essenciais do esporte amador, que quase não se vê mais em eventos desportivos dessa magnitude. (O que não quer dizer que não exista rivalidade.)
Embora seja uma competição individual no sentido de que o vencedor final é um único ciclista, o Tour de France valoriza profundamente o trabalho em equipe. Os gregários, ou “domestiques”, desempenham papéis cruciais ao ajudar os líderes da equipe, protegendo-os do vento, fornecendo suporte em subidas e garantindo suprimentos e apoio psicológico. Essa colaboração reforça a camaradagem e o espírito de sacrifício pelo bem do grupo.
Do lado das equipes, a competição não poderia ser mais interessante. Algumas são globais e lembram as equipes de Fórmula 1, com recursos vindo de países como os Emirados Árabes, Cazaquistão, Holanda, França, Inglaterra, e dos tradicionais investidores de esportes como Red Bull e Ineos. Em contrapartida, equipes locais e quase sem recursos, movidas pela tradição e a paixão pelo esporte, competem em pé de igualdade.
A proximidade com os fãs é outra característica marcante do Tour. Os ciclistas passam por cidades e vilarejos onde espectadores fanáticos fazem uma festa à parte, torcendo e, até algumas vezes, perigosamente interagindo com os ciclistas. Literalmente empurrando-os. Chega a ser uma loucura. De qualquer forma, essa conexão direta entre atletas e fãs resgata um senso de comunidade típico dos esportes amadores.
Ao fim e ao cabo, o Tour celebra a resiliência dos ciclistas que, apesar das quedas, lesões, dores e exaustão extrema, continuam competindo, refletindo a essência do esporte amador, no qual a paixão e a determinação superam as adversidades – e as tradições são mantidas ao longo dos anos, preservando a essência da competição e celebrando o legado do ciclismo. São muitas lições em uma única competição.
As etapas são transmitidas diariamente pela ESPN, onde os comentaristas Celso Anderson e Renan do Couto são muito preparados e particularmente simpáticos e bem humorados. Já as maravilhosas imagens dos cenários por onde os ciclistas passam são fornecidas pela TV francesa; e os comentários incluem curiosidades históricas e contemporâneas, dicas de turismo e até recomendações de vinho e gastronomia.
Fernando Iunes é presidente do conselho do Movimento Bem Maior e membro do conselho consultivo da UNICEF Brasil.