Quando Emerson Fittipaldi alinhou uma Lotus de segunda linha no fundo do grid do GP da Inglaterra de 1970, começava a ser escrita uma das mais gloriosas histórias do esporte do Brasil.
A partir dali, por 47 anos ininterruptos sempre houve um brasileiro correndo na Fórmula 1.
Mais do que isso: o país tornou-se uma potência da principal categoria do automobilismo, colecionador de títulos e vitórias, e passou a ser visto como um celeiro inesgotável de talentos.
Emerson, Nelson Piquet, Ayrton Senna… Num intervalo de 19 anos, entre 1972 e 1991, esse trio conquistou 8 títulos mundiais, 69 vitórias, 90 pole positions, 46 melhores voltas.
O sucesso tão estrondoso de um país emergente na F1 levou o tricampeão Jackie Stewart a cunhar uma frase que se tornou célebre. Certa vez, questionado sobre o segredo dos brasileiros e sem ter uma explicação racional, saiu-se com essa: “É a água que eles bebem”.
Se era a água, a fonte secou.
De 91 pra cá, o Brasil nunca mais ganhou um título, e nas últimas cinco temporadas, sequer teve um piloto disputando o campeonato.
Quando Felipe Massa estacionou sua Williams no fim do GP de Abu Dhabi de 2017, depois de chegar na décima posição, começava um longo e previsível jejum.
Desde então, o Brasil nunca mais teve um piloto disputando uma temporada completa na F1. Neto de Emerson, Pietro Fittipaldi correu dois GPs em 2020 como substituto de um piloto acidentado, Romain Grosjean, na mais nanica equipe do grid, a Haas. E foi só.
O GP da Hungria, neste domingo, no mesmíssimo circuito que em 1986 foi palco de um histórico duelo entre Piquet e Senna, será a 55ª etapa seguida sem um brasileiro no grid.
Por quê?
“Para você chegar à Fórmula 1 precisa de várias coisas. A mais importante, no começo, é o talento. Sem isso não dá pra avançar. Depois você precisa de categorias de base, e o Brasil sofreu muito com isso nos últimos anos. A base é muito importante para preparar o piloto. Hoje em dia a gente tem a Fórmula 4, que é recente, que está evoluindo, mas que ainda está um nível abaixo da Europa,” Massa, vice-campeão da F1 em 2008 e hoje piloto da Stock Car, disse ao Brazil Journal.
Ele fala com conhecimento de causa.
Quando deixou o kart, aos 16 anos, sua primeira experiência com carros de corrida foi no Campeonato Brasileiro de Fórmula Chevrolet. O título na temporada de 2000 serviu como trampolim para ele correr na Europa no ano seguinte.
Roteiro parecido foi seguido por seus antecessores na Fórmula 1 – nomes como Mauricio Gugelmin, Rubens Barrichello, Christian Fittipaldi, Pedro Paulo Diniz, Luciano Burti, Ricardo Rosset, Ricardo Zonta… Do kart para as pistas do Brasil, e daí para a Europa.
Eis o primeiro problema. Por exatos dez anos, desde o fim da Fórmula Futuro, em 2012, até o surgimento da Fórmula 4, em 2022, o Brasil não teve uma categoria de base capaz de preparar pilotos. Jovens talentos saídos do kart simplesmente não tinham onde correr.
A saída, para quem tinha os recursos para isso, era atravessar o Atlântico e ir competir na Europa. Quem não tinha esse poder de investimento enveredou para a Stock Car ou simplesmente abandonou o sonho.
Isso tem a ver com a ineficiência de gestões passadas da Confederação Brasileira de Automobilismo – e também está ligado a uma questão de mercado: montadoras como Ford, Fiat, Renault e Chevrolet, que já organizaram suas categorias, mudaram o foco dos investimentos.
O resultado desses dez anos de torneira fechada está aí.
Mas e os pilotos que foram para a Europa?
Como em toda seleção natural, vários ficaram pelo caminho. Outros bateram na trave.
Luiz Razia chegou a fazer testes para cinco equipes de F1. Sérgio Sette Câmara foi reserva da Red Bull e da AlphaTauri. Pietro Fittipaldi está no banco da Haas há cinco temporadas. E, desde o fim do ano passado, Felipe Drugovich é reserva da Aston Martin.
Nesta ponta de funil, dois outros problemas deixaram os brasileiros no “quase”.
Falta investimento. O orçamento de uma equipe de Fórmula 1 hoje é de US$ 135 milhões anuais – um teto definido por regulamento. Escuderias de segunda e terceira classes normalmente “leiloam” vagas para jovens pilotos que trazem bons aportes de patrocinadores.
É por isso, por exemplo, que hoje há um chinês na Alfa Romeo (Guanyu Zhou), e um americano na Williams, (Logan Sargeant). Nenhum deles está lá por ter conseguido destaque nas categorias de base. Estima-se que o canadense Nicolas Latifi, antecessor de Sargeant, levava cerca de US$ 60 milhões por ano para a equipe inglesa.
Mas o caso mais gritante é o de outro canadense, Lance Stroll. Seu pai, o empresário Lawrence Stroll é dono de uma fortuna estimada em US$ 3,8 bilhões. Em 2018, ele comprou uma equipe para que o filho corresse. A Force India foi rebatizada como Racing Point e depois como Aston Martin. Atualmente é a terceira colocada no Mundial de Construtores.
Outra dificuldade são os programas de desenvolvimento de pilotos. Inspirando-se em casos como os de Lewis Hamilton, que chegou à McLaren aos 13 anos, e de Max Verstappen, cooptado pela Red Bull aos 16, as equipes tentam fisgar e formar suas próprias estrelas cada vez mais cedo.
O caminho é mais duro para quem não é escolhido.
O paulistano Caio Collet, de 21 anos, vive essa experiência. Entre 2019 e 2022, foi membro da Academia da Renault – hoje Alpine. Atualmente corre na Fórmula 3, o penúltimo degrau antes da categoria principal. Segue com apoio da montadora francesa, mas desde o início da temporada não integra mais o programa de jovens pilotos. Sabe que agora sua melhor (ou única) chance é conseguir resultados expressivos.
“Para chegar à F1 você precisa de resultado ou de investimento. Ou você ganha tudo, como fez o Oscar Piastri recentemente [o australiano foi campeão da F3 e da F2 em anos consecutivos antes de ser contratado pela McLaren] ou você precisa de bastante investimento,” Collet explica.
Hoje, além de Drugovich na Aston Martin, há outros brasileiros em programas de desenvolvimento: Enzo Fittipaldi, piloto da F2 e irmão de Pietro, na Red Bull, Matheus Ferreira, na Alpine, e, uma novidade, uma pilota, Aurelia Nobels, na Ferrari – estes dois últimos correm a F4 italiana.
É isso que persegue Gabriel Bortoleto, de apenas 18 anos, a nova sensação do Brasil no automobilismo. Estreante na F3, ele lidera o campeonato com boa vantagem sobre o segundo colocado, o espanhol Pepe Martí. Seu talento já chamou a atenção de um nome importante da F1: desde o ano passado, a empresa do bicampeão Fernando Alonso gerencia sua carreira.
Não por acaso, Bortoleto conta que já foi sondado por algumas equipes da F1, mas que é preciso deixar a ansiedade de lado antes de assinar qualquer compromisso.
“O ideal seria fazer parte de um programa de desenvolvimento. Isso te proporciona conviver com a equipe, fazer testes, aprender… É hoje a melhor porta para entrar na F1. Mas tem que ser uma escolha muito cuidadosa, porque há o risco de ficar preso a um contrato de longo prazo, não surgir nenhuma vaga naquela equipe e você ficar parado,” conta.
Emerson dirigia o próprio trailer, Piquet dormia na oficina, Senna testava carros para completar o orçamento. Talvez não fosse um caminho mais fácil, mas certamente era mais idílico – como a lenda da água criada por Stewart.
Fábio Seixas é head de conteúdo da LiveSports e cobre o mundo do esporte há 27 anos.