Lá atrás, nos idos dos anos 50 e 60, alguns cinemas de calçada do Rio de Janeiro eram conhecidos como “poeira”. O apelido se justificava pela estrutura antiga das salas: as poltronas de madeira tinham apenas os assentos estofados, os projetores vez por outra davam defeito e o som abafado dificultava a compreensão dos diálogos. Uma juventude curiosa para descobrir filmes clássicos e polêmicos, porém, formava filas nas bilheterias, e a precariedade destes espaços não impediu a formação da bagagem de gerações de cinéfilos.
Corta a cena para os primeiros anos da década de 2000.
As atrizes Andrea Beltrão e Marieta Severo, amigas desde 1989 quando contracenaram no espetáculo A Estrela do Lar, dividiram uma inquietação durante um intervalo das gravações do seriado A Grande Família, na Rede Globo.
“Eu ando cansada de fazer peça em teatros enormes, usar microfone, queria retomar o olho no olho com o espectador, quem sabe, ter o meu teatro, pequeno e aconchegante,” comentou Marieta.
Andrea, mais animada e corajosa, pensou alguns segundos e tomou a iniciativa. “Então vamos procurar um terreno e construir um teatro nosso.”
Depois dessa conversa, virou rotina a dupla tirar os figurinos de Dona Nenê e Marilda, as personagens de A Grande Família, e dar voltas de carro pelo Rio em busca do ponto ideal para fazer do sonho uma realidade. O diretor Aderbal Freire-Filho (1941-2023), marido de Marieta e a terceira base do empreendimento criativo, avisou sobre um lugar que, depois de uma reforma, poderia ser a sede do teatro, no bairro de Botafogo: “Passo todos os dias na frente desta casa e vejo uma placa de aluga-se”.
Era um sobrado de 1927 na Rua São João Batista, 104, pertinho do famoso cemitério, com a fachada tombada e, nos fundos, um grande galpão capaz de ser transformado no que bem entendessem.
“A gente queria um espaço vazio e mutável, que fosse adaptado de acordo com as necessidades de cada encenação e deixasse o público próximo da experiência artística,” Marieta disse ao Brazil Journal.
Com dinheiro do próprio bolso, as atrizes compraram a casa e encararam a reforma que durou mais de ano. Ganharam alguns apoios surpreendentes, como o de uma madeireira, que doou as tábuas para o palco, e de uma fábrica de cortinas, que vendeu os panos com um desconto bem acima do esperado – mas nada de patrocínio.
O diretor de cinema e televisão Maurício Farias, marido de Andrea, se lembrou do velho conceito dos cinemas poeira e batizou o novo espaço. Os teatros de calçada desapareciam gradativamente do Rio, e a referência remeteria a uma programação efervescente, cultuada por espectadores e artistas, jamais a um lugar decadente e precário.
“A gente brinca que o Poeira é um teatro de meninas, tudo caprichadinho, com armários para guardar figurinos, lavanderia e tábua de passar roupa,” diz Marieta.
O Poeira foi inaugurado em 23 de junho de 2005 com a estreia de Sonata de Outono, peça de Ingmar Bergman dirigida por Freire-Filho, em que Marieta e Andrea interpretavam um acerto de contas entre mãe e filha.
Um deck de madeira do lado de fora em uma fachada iluminada, um café logo depois da entrada e as paredes brancas colaboram até hoje para o clima simples e aconchegante. A plateia reúne, no máximo, 171 poltronas (moduláveis em dois níveis) que abraçam o palco – uma estrutura intimista, como as duas idealizadoras imaginavam.
“Nesta noite, a Andrea e eu olhávamos uma para a cara da outra enquanto ouvíamos os aplausos e dizíamos juntas: ‘isto aqui é um teatro e é diferente de tudo o que estávamos acostumadas,’” lembra Marieta.
Em 2008, o sucesso animou as sócias a comprarem e reformarem a oficina mecânica vizinha ao sobrado, e o que era para ser uma sala de ensaios virou mais um teatro. O Poeirinha, aberto em 2011, tem 50 lugares e a mesma qualidade técnica da sala principal.
O produtor Sérgio Saboya, que já ocupou o casarão da São João Batista com os espetáculos Tom na Fazenda, Tebas Land e Tráfico, diz que o público confia na qualidade da programação que vai encontrar nas duas salas. “O envolvimento de quem administra o espaço com o espetáculo é fundamental para o resultado e, como duas artistas, Andrea e Marieta sabem o perfil dos trabalhos que querem lá,” disse Saboya.
Ele cita o monólogo Tráfico, protagonizado por Robson Torinni, que estreou no Poeirinha em novembro de 2022 e ficou um ano em cartaz. “Foram 99 sessões que atraíram 5.893 pessoas; se pensarmos que lá tem 50 lugares, conseguimos uma dimensão melhor do feito”, diz. “Nos dois Poeiras, as temporadas exitosas têm a oportunidade de uma continuidade um pouco maior, algo raro hoje em dia, o que permite um melhor planejamento para os produtores.”
Em quase 20 anos, o Poeira se tornou referência de curadoria graças a uma programação cuidadosa. Além de Sonata de Outono, as duas sócias dividiram o palco em As Centenárias (2007/2008) e O Espectador (2022), enquanto Andrea, junto a outros colegas, fez as peças Jacinta (2012), Nômades (2014), Antígona (2017) e o recente Lady Tempestade, entre janeiro e fevereiro.
Um grande sucesso do Poeira foi Incêndios, com Marieta à frente do elenco, sob o comando de Freire-Filho em 2013. “Quem criou essa curadoria extraordinária foi o Aderbal, e hoje nós duas seguimos a mesma direção,” disse Andrea. “O Aderbal faz uma falta enorme, mas desenvolvemos um pouco de intuição e acho que em 90% das vezes acertamos,” completa Marieta, elogiando o companheiro, morto em agosto passado.
A pauta, entretanto, nunca ficou restrita aos projetos das atrizes e do diretor, que também encenou por lá O Púcaro Búlgaro (2006) e Moby Dick (2009), entre outros. O ator Kiko Mascarenhas já levou ao Poeira trabalhos de intérprete – a exemplo do monólogo Todas as Coisas Maravilhosas, em 2019 e 2023 – e de produtor, caso de O Jornal, que dirigiu em 2017 junto de Lázaro Ramos.
“Como é um teatro criado por artistas é estabelecida uma relação afetiva e não burocrática”, disse Mascarenhas. “O público não sabe, mas é comum os atores encontrarem bastidores com condições precárias, de abandono mesmo, e, no Poeira, tudo se mantém novo como há 20 anos.”
A ideia de desistir do Poeira jamais passou pelas cabeças de Andrea e Marieta. Na pandemia, a fase das maiores agruras financeiras, o teatro ficou fechado por mais de dois anos e nenhum funcionário correu o risco de demissão. A dupla cobriu todas as despesas – o que, segundo Andrea, não é uma novidade, já que, assim como a sócia, ela acumula há décadas a experiência de produtora e nunca viu dinheiro sobrar.
“Tivemos patrocínio da Eletrobras por três anos e da Petrobras por outros dez, destinados quase que exclusivamente aos projetos de pesquisa e formação do Aderbal, que trouxeram nomes internacionais, como o dramaturgo espanhol José Sanchis Sinisterra e o diretor italiano Eugenio Barba,” diz a atriz. “Sem o Poeira não seríamos tão felizes, ele só traz alegrias para nós, para quem trabalha lá e para o público que recebemos.”