Por alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial, todos os mísseis balísticos da Marinha dos EUA foram produzidos em Santa Clara, na Califórnia, uma região onde hoje fica a sede de empresas tecnológicas como a Nvidia.
Foi do Vale do Silício também que saíram tecnologias com os satélites espiões usados pela agência de inteligência americana e inúmeras outras inovações militares que eventualmente se transformaram em bens de consumo e beneficiaram bilhões de pessoas ao redor do mundo, como medicamentos, semicondutores e os primeiros sistemas de inteligência artificial.
Mas a “encarnação moderna do Vale do Silício se desviou significativamente dessa tradição de colaboração com o governo,” diz Alexander Karp, o cofundador e CEO da empresa de software e análise de dados Palantir.
Karp elabora esta tese no recém-lançado A república tecnológica: tecnologia, política e o futuro do Ocidente (Intrínseca; 304 páginas), um livro-manifesto escrito a quatro mãos com Nicholas Zamiska, o chefe de assuntos corporativos e consultor jurídico da empresa. (Para comprar, clique aqui.)
O mercado é um poderoso motor de inovação, mas nem sempre capaz de fornecer o que é mais necessário em determinados momentos, afirmam Karp e Zamiska. A era digital estaria sendo dominada, segundo eles, pelas redes sociais, publicidade e comércio online – resultando em um declínio na inovação nos EUA.
“Chegou um momento de ajuste de contas para o Ocidente,” escrevem os autores. “O Estado se retirou da busca pelo tipo de avanço em larga escala que levou à criação da bomba atômica e da internet.”
Três décadas atrás, a primazia tecnológica, econômica e militar das potências capitalistas ocidentais era inconteste. Em 1989, o cientista político Francis Fukuyama marcou época com o ensaio sobre “o fim da história” – depois expandido para um livro, publicado meses antes da queda do Muro de Berlim. Em 1991, a União Soviética colapsou.
Karp e Zamiska consideram que os EUA se tornaram complacentes, o que coloca em risco o futuro do país e dos valores ocidentais.
Agora a corrida armamentista não é mais travada no poder de destruição dos artefatos nucleares, dizem os autores, e sim na superioridade em inteligência artificial.
“A capacidade de as sociedades livres e democráticas prevalecerem requer mais do que o mero apelo moral; requer hard power (poderia bélico e coercitivo), e neste século esse poderio será construído com base em software,” afirmam. “A próxima era de conflitos será vencida ou perdida com softwares.”
Chegou ao fim o tempo da dissuasão atômica – e “uma nova era de dissuasão baseada em IA está prestes a começar.”
Para Karp, o grande adversário do Ocidente é a China, que vem conquistando avanços tecnológicos inegáveis e potencialmente colocando em risco a superioridade militar dos americanos.
Os autores citam, por exemplo, que três das seis das mais avançadas empresas de reconhecimento facial do mundo são chinesas – e empregam os recursos para monitorar opositores e minorias étnicas. Outra conquista notável da engenharia chinesa foi o desenvolvimento de enxames de pequenos drones – que podem ser usados para fins pacíficos, mas também militares.
São essas as armas das guerras futuras, e os EUA estão perdendo terreno, dizem os autores, porque foi rompido o elo de inovação entre empresas e governo.
As mentes mais brilhantes da engenharia e da ciência de dados relutam em trabalhar para as Forças Armadas e para outras entidades estratégicas do setor público. Preferem centrar energia na criação de mais uma badalada startup ou da nova rede social do momento. Os cientistas e empreendedores em tecnologia evitam criar controvérsias com os amigos, dizem Karp e Zamiska.
O Vale do Silício foi “tomado pelo ceticismo em relação ao trabalho do governo e à ambição nacional” – e os “imponentes experimentos coletivistas da primeira metade do século XX foram repudiados” em favor de objetivos individualistas.
“A era das redes sociais e dos aplicativos de entrega de comida havia chegado,” escrevem os autores. “Inovações médicas, reforma educacional e avanços militares teriam que esperar.”
Os argumentos ecoam as ideias defendidas por Peter Thiel, o cofundador da Palantir e do PayPal, no livro De zero a um: o que aprendemos com o empreendedorismo do Vale do Silício, de 2014.
Para Karp e Zamiska, “o setor de tecnologia tem uma obrigação afirmativa de apoiar o Estado que possibilitou sua ascensão.” Os engenheiros e cientistas precisam recuperar protagonismo, em contraponto à “legião de advogados que passaram a dominar a política dos EUA.”
Foi com essa ambição que Thiel e Karp, ao lado de outros sócios, criaram a Palantir – cujo objetivo central pode ser resumido como a liderança no desenvolvimento de ‘armas’ da nova indústria bélica dos softwares e modelos de inteligência artificial.
Como dizem Karp e Zamiska, a ideia “radical” de elaborar tecnologias que atendessem as necessidades das agências de defesa e inteligência dos EUA – em vez de criar mais uma startup para contentar os consumidores – partiu de Thiel, “que notou a limitada ambição do Vale do Silício.”
O livro é um manifesto – e como tal não se furta de ser unilateral, chegando a condenar “o establishment de esquerda” que teria traído a própria causa na busca de um “igualitarismo raso” e de uma “neutralidade vazia.”
A cruzada “pelos valores ocidentais” dessa nova tech right – os conservadores da indústria de tecnologia que têm em Thiel sua figura mais influente e mantêm laços estreitos com J.D. Vance, o vice de Donald Trump – causa arrepios em muita gente pelo flerte de algumas de suas ideias com a autocracia e o iliberalismo.
Karp e Zamiska, no entanto, teorizam que o “cultivo de um nacionalismo excessivamente potente e irrefletido” tem riscos, mas “a rejeição de qualquer forma de vida em comum também.”
Os autores concluem convocando uma reconciliação nacional em torno de objetivos compartilhados para reconstruir o que chamam de “república tecnológica” – e isso pressupõe pisar no acelerador do desenvolvimento da nova fronteira aberta por tecnologias como a inteligência artificial, por mais que haja perigos envolvidos.
“É essa combinação de busca por inovação e objetivos da nação que não apenas vai aprimorar nosso bem-estar como também preservar a legitimidade do próprio projeto democrático,” afirmam.
Se você quer a paz, esteja preparado para a guerra, já disse um antigo escritor nos tempos do Império Romano.