No que é potencialmente a mais grave ameaça regulatória que a indústria de gás liquefeito já enfrentou, a ANP está propondo mudanças que podem acabar na prática com o valor da marca das empresas e explodir (literalmente) os padrões de segurança do setor.

As mudanças fazem parte de uma ampla reforma que a ANP está desenhando para o setor, que segundo a agência teria o objetivo final de aumentar a competição e reduzir preços.

Dentre as seis propostas, duas estão tirando o sono de empresários e executivos. 

A primeira quer permitir que qualquer empresa de gás possa encher o botijão de outras marcas – acabando com o modelo atual que fideliza o cliente. A segunda propõe liberar o chamado ‘enchimento fracionado’ – em outras palavras: o consumidor poderia completar a carga do botijão em vez de esperar seu esvaziamento completo e ter que trocá-lo por um botijão cheio, como ocorre hoje.

Executivos e empresários do setor têm alertado a ANP de que as duas medidas trazem riscos grandes de segurança, abrem a porta para players informais no setor e desincentivam investimentos,  tendo o efeito contrário ao desejado, encarecendo o produto.

“Hoje, quando o consumidor recebe um botijão em casa, se acontece alguma coisa com aquele botijão a responsabilidade é da marca,” disse um dos executivos. “Se a empresa do botijão não fez o último enchimento, quem vai ser responsabilizado?”

Sergio Bandeira de Mello, o presidente do Sindigás, que representa as oito maiores distribuidoras de GLP, disse que além da segurança há outras questões em jogo. 

“A garantia que existe hoje de que só a empresa detentora da marca vai poder envasar aquele botijão é um incentivo para as empresas terem um parque de botijões com excelência e fazerem manutenções periódicas nesses parques,” Sergio disse ao Brazil Journal. “Em mercados onde se tirou a marca, como o Paraguai e o México, o que aconteceu é que o parque de botijões foi ficando cada vez mais degradado.”

Sobre o enchimento fracionado, Sergio disse que ele criaria uma ineficiência “bizarra.”

“Imagina o consumidor tendo que pegar seu botijão e levar para encher a cada 6 kg de consumo, por exemplo. O custo logístico vai se multiplicar de forma incrível. É uma bobagem sem cabimento,” disse ele.  

Num relatório a clientes, o BTG foi na mesma linha, dizendo que o enchimento fracionado é uma das propostas mais problemáticas da reforma. 

“Além dos riscos à segurança de permitir o abastecimento de GLP em áreas urbanas, o modelo cria desafios significativos de compliance. Com vários postos de abastecimento descentralizados gerenciando seus próprios volumes, potencialmente sujeitos a manipulação, e sem um mecanismo transparente para que os consumidores verifiquem o volume abastecido, o risco de fraude aumenta.” 

O BTG nota que os consumidores de GLP não teriam um mecanismo claro para verificar a quantidade abastecida, “prejudicando tanto a segurança quanto a confiança dos consumidores.”

 As medidas também acabariam gerando um desincentivo a novos investimentos num momento em que o Governo precisa estimulá-los para conseguir sucesso com sua política do ‘Gás para Todos.’

“A barreira de entrada do setor hoje é o capex de comprar os botijões. Se a ANP passar a permitir que qualquer empresa use um botijão da Copa Energia ou da Supergasbras, por exemplo, essas empresas entrantes vão estar surfando no capex do outro para ganhar dinheiro,” disse outro executivo do setor. “Com isso, ninguém mais vai dar manutenção ou investir em comprar mais botijões.”

As novas medidas também acabariam abrindo a porta para players informais entrarem no setor, como já aconteceu no mercado de combustíveis. 

As propostas da ANP ainda estão em fase de análise. Em 10 de julho, a diretoria da agência aprovou a análise de impacto regulatório, e agora a equipe técnica está trabalhando nas minutas das propostas, o que deve ser concluído até novembro. 

Com as minutas prontas, haverá uma consulta pública, com a expectativa de resoluções finais até março. 

Segundo fontes do setor, o lobby para a aprovação das mudanças está partindo principalmente de dois grupos: os atacadistas, que compram botijões das distribuidoras e vendem para os revendedores menores; e os fabricantes de equipamentos para o envase de GLP, que vêm oportunidade de vender mais com a ampliação do mercado. 

“Os atacadistas estão achatados entre o varejo e a distribuição, e se perguntando por quantos anos ainda tem espaço para eles. O caminho que eles estão vendo é virar envasador, e para isso estão prometendo à ANP que se ela acabar com as marcas eles conseguem vender 20% mais barato,” disse um executivo. “Mas isso não é possível, porque esse é um negócio de escala.”

O analista Luiz Carvalho, que cobre o setor há anos, disse que as propostas “representam uma grave ameaça para a integridade estrutural do setor de GLP.”

“Ao minar protocolos de segurança bem estabelecidos e comprometer investimentos de longo prazo, a reforma corre o risco de desmantelar um modelo reconhecido por sua segurança, eficiência e confiabilidade. Se a reforma for aprovada, acreditamos que ela vai introduzir riscos legais, operacionais e de reputação, sem trazer benefícios claros ao consumidor,” escreveu o analista.

O CEO da Ultragaz, Tabajara Bertelli, disse ao Brazil Journal que a regulação atual “proporcionou um setor competitivo, com padrões de segurança que são referência internacional. No Brasil você não vê botijões adulterados, porque o modelo que temos hoje garante a rastreabilidade, a responsabilidade da marca e o controle de qualidade.”

Segundo ele, entre 2018 e 2022, a indústria requalificou 55 milhões de botijões e colocou outros 12 milhões novos em circulação, somando R$ 3,6 bilhões em investimentos em segurança.

“Enquanto outros países ainda lidam com fraudes e riscos à população, aqui conseguimos aliar garantia de abastecimento com segurança.”