Depois de não medir esforços para suavizar o impacto da pandemia nos mais vulneráveis, o Brasil vai precisar retomar a disciplina fiscal.

Fácil dizer — quase impossível fazer.

10520 5a42dc02 126f 0000 0004 f8c2ca8823cfCom isso em mente, o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES) está colhendo assinaturas para uma Proposta de Emenda Constitucional — já batizada de PEC da Calamidade — que propõe medidas que podem economizar R$ 31 bilhões por ano nos próximos dois anos.

Para começar a tramitar, a PEC precisa de 171 assinaturas.  Trata-se de uma proposta tão realista quanto impopular, de autoria de um deputado em seu primeiro mandato, nitidamente interessado em fazer a coisa certa.

“Infelizmente são coisas muito duras que precisamos fazer, mas se não fizermos vamos entrar numa situação de não conseguir pagar as dívidas, dos estados estarem ainda mais quebrados, de não conseguir financiar serviços públicos. No fim das contas, a realidade fiscal se impõe.”

Para os brasileiros que ainda esperam (sentados) que a elite do funcionalismo público faça os mesmos sacrifícios exigidos do setor privado, a PEC traz uma boa notícia: ela fatalmente levaria a uma redução de salários para os deputados, senadores, o Presidente e os ministros.

Abaixo, os principais trechos da conversa de Rigoni com o Brazil Journal:

Quais as economias de caráter temporário que são propostas?

Trazemos para o momento atual todos os gatilhos da Emenda 95 (o Teto de Gastos). Ou seja, ativamos esses gatilhos de imediato por dois anos mesmo sem ter estourado o Teto dos Gatos. O Teto congela o valor real do salário mínimo, ou seja, não permite mais aumentar além da inflação, e impede a criação de gastos obrigatórios. É como se ele pegasse os gastos obrigatórios e os congelasse também.

Além disso, trazemos quatro grandes pontos para União. O primeiro é o congelamento salarial de todos os servidores por dois anos. O segundo: trazemos a necessidade de fazer uma redução do gasto com o pessoal comissionado em 20%. Essa redução pode vir na forma de demissão ou redução salarial. 

 
O terceiro: a necessidade de reduzir a jornada e, consequentemente, o salário dos servidores estáveis em até 25%. Não impomos isso a todos:  deixamos para o chefe do Poder emitir um ato que vai dizer quem são os servidores que vão ter a jornada reduzida. E colocamos na PEC que essa parte temporária é ativada toda vez que for decretado Estado de Calamidade, esse é o gatilho. 

Quanto isso pode gerar de economia?

Fizemos uma projeção com o pessoal da consultoria de orçamento da Câmara, e tirando os essenciais, saúde e segurança, teríamos uma economia anual de R$ 9 bilhões só com essas duas medidas (redução dos comissionados e servidores estáveis). Fora isso, tem a medida do congelamento que é difícil prever com tanta certeza porque depende da inflação… mas você abre um espaço fiscal, porque a inflação aumenta nominalmente a arrecadação e os salários continuam congelados. No total, achamos que essa parte toda das medidas temporárias deve dar uma economia de uns R$ 29 bilhões a R$ 30 bilhões por ano. 

Quais as mudanças de caráter permanente?

Essa é a parte que acho mais importante, porque dá um contingenciamento fiscal um pouco mais razoável para o Brasil e tira alguns absurdos que existem no nosso País. A PEC impede, por exemplo, o recebimento de acúmulo de salários, benefícios, ou qualquer coisa que signifique passar do teto remuneratório da Constituição (R$ 39,2 mil por mês). Isso sozinho vai dar uma economia anual de R$ 2 bilhões só na União. Mas isso vale também para Estados e Municípios, mas é difícil calcular porque principalmente o pessoal do Judiciário não é muito transparente em relação a isso. Mas é bem mais do que R$ 2 bi.

Já existe uma lei que impede que alguém ganhe acima desse teto. Mas o que acontece é que o Judiciário sempre dá decisões abrindo exceções. O que muda com essa PEC?

O que muda é que colocamos na Constituição exatamente que não pode ter salário acima do teto, hoje não tem isso. Quando vira uma lei o Judiciário não tem mais como fazer isso… e damos várias amarras. Se você olhar o texto da PEC, referenciamos essa parte em vários lugares da Constituição justamente para, se cair um, ter outro pra segurar. 

Tem gente hoje que acumula pensão de um ex-cônjuge que faleceu com o salário, aí ganha R$ 50 mil por mês. Tem gente que vai acumulando penduricalhos e aí ganha mais de R$ 40 mil. Eles vão acumulando coisas que falam que não é salário, mas que é remuneratório. E aí damos esse limite.

Outra mudança de caráter permanente é permitir a utilização dos saldos dos fundos dos Poderes. O que é isso? Isso vale muito mais para Estados do que para a União. O Judiciário e Legislativo recebem a mensalidade do Executivo e o que sobrar do que eles consomem eles vão colocando em fundos. O Rio de Janeiro, por exemplo, tem quase R$ 2 bilhões acumulados entre fundos do Legislativo e do Judiciário, que não é usado para nada, além de benefícios para os servidores. 

 
A PEC permite a utilização pelo Executivo desses fundos. Mas como? Ou eles vão devolver ou vai ter um desconto na próxima mensalidade paga pelo Executivo até que zere o valor dos fundos. Isso dá um dinheiro bom, principalmente para os Estados usarem. Esse recurso seria alocado para o Tesouro dos Estados e vira um espaço fiscal a mais. Um dinheiro que o Estado pode usar para pagar funcionalismo, etc. O que a PEC está dizendo é que saldos não utilizados devem ser enviados para o Tesouro estadual ou senão serão descontados nas próximas mensalidades.

Mas a parte que acho mais importante da PEC é essa: o artigo 169, que trata do limite de gastos com pessoal, é um artigo que dá força à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Hoje, a LRF tem algumas coisas importantes que não são consideradas na prática, porque a Constituição não traz. O que estamos fazendo é colocar na Constituição. 

 
Um exemplo: o limite de gastos com pessoal é de 60%. Na LRF diz que os pensionistas contam nesse gasto com pessoal, o que é óbvio porque eles também estão recebendo do Estado. Mas na Constituição não fala de pensionistas. O que acontece? Alguns Estados não contam pensionistas como gasto com pessoal. Então incluímos isso na Constituição, o que dá mais poder à LRF. 

Uma vez estourado o limite de gastos, a Constituição hoje traz algumas medidas. A gente adicionou outras. E é nessa ordem e cumulativo até chegar no limite, não é tudo de uma vez. A primeira é congelamento de salários; a segunda é redução de 20% dos gastos com o pessoal comissionado; a terceira é a redução de jornada com consequente redução salarial em até 25%; a quarta é redução em até 20% do pessoal não estável (o cara que está em estágio probatório); e por último, isso já estava na Constituição, é a redução em até 20% do pessoal estável. Mas essa é a última das medidas. 

A única que já estava na Constituição é essa redução de 20% do pessoal estável? As outras vocês introduziram?

As outras já estavam de maneira diferente. O congelamento já estava; a redução de 20% dos comissionados já estava, mas a única possibilidade era demitir, a gente coloca que você tem que reduzir o custo em 20%, pode ser via demissão ou redução salarial, o que traz mais flexibilidade. A redução de jornada, que é a que dá mais efeito fiscal para os Estados, não tinha, a gente que introduziu. E no caso dos não estáveis e dos estáveis estava solto, a gente dá o limite de 20%. Mas na realidade dos Estados é muito difícil chegar nessas duas últimas. As três primeiras já chega no limite prudencial. E hoje a maioria dos Estados já estourou esse limite.

Quais as chances de conseguir pautar e votar essa PEC?

O que eu senti ao longo desse período é que começando a pandemia as pessoas desligaram da necessidade das reformas, apesar delas se tornarem ainda mais necessárias. Agora, tivemos uma declaração do Rodrigo Maia sobre essa necessidade de fazer um contingenciamento dos gastos obrigatórios, que passa por redução salarial, uma série de medidas que estão na PEC. Então, acho que ganhamos um timing político importante para começar esse debate. Mas não vai ser um debate fácil, talvez tão difícil quanto o da previdência porque lida com setores muito organizados.

Ao escrever essa PEC, quem te ajudou na inteligência do projeto?

Eu estava cotado para ser o relator da PEC 438, que é a PEC do deputado Pedro Paulo que tratava da Regra de Ouro e dava gatilhos muito parecidos. Estávamos construindo com o pessoal da Câmara, alguns do Senado (o Marcos Mendes, por exemplo), e o pessoal do Tesouro. Eram 25 assessores mais eu e o Pedro Paulo trabalhando na redação final. Tudo isso são medidas que já discutimos lá. Então, a inteligência veio desse grupo, mas quem escreveu mesmo foi a consultoria de orçamento da Câmara. 

Depois que conseguir as assinaturas, acha que consegue pautar rápido?

Vamos precisar da ajuda do Governo, que é o maior beneficiado disso, que vai ter espaço fiscal para fazer investimentos. Vamos precisar de todo mundo que é a favor dessa pauta, porque não é um debate fácil. Veja as medidas que estamos colocando. E isso pode causar redução salarial dos deputados, presidente, ministros. Então, vamos precisar de um levante importante para isso ser votado.

Qual o dispositivo que geraria o corte salarial dos deputados e presidente?

A redução de jornada. Porque falamos em algumas partes da PEC que isso vale para os membros dos Poderes. Não só para os servidores. 

Mas é uma redução obrigatória? Ou se alguma métrica não for atingida?

No caso da União é obrigatória, mas vai ter que ter um ato do chefe do Poder. Não posso abdicar disso. O problema é que tem alguns servidores que de fato não precisa ter redução agora, médicos e enfermeiros, por exemplo. Mas para fazer isso tem que ter um ato do chefe do Poder dizendo quem vai ter essa redução. Essa redução engloba todo mundo, mas aí é uma outra luta para que nesse ato também estejam os deputados, porque eles tão dentro da PEC. 

Não é algo automático, mas os chefe do poder vai ter que fazer uma redução… se ele faz isso para todos os servidores e não faz para ele, é uma coisa muito incoerente. 

Desde que começou a pandemia, teve alguma medida da União para reduzir gastos com servidores públicos?

Nada, não teve nada. Teve 10% de redução dos gastos discricionários da Câmara e teve no PLP 39 o congelamento por ano e meio dos salários dos Estados.

O Brasil precisa fazer um esforço fiscal ainda maior depois de pandemia. O pessoal antes falava que precisávamos fazer um esforço de 5% do PIB em redução de gastos obrigatórios. Agora já falam em 6%, 7% do PIB. 

Essa PEC é justamente para levantarmos essa discussão de novo. As medidas já são conhecidas, parte deles já estão na PEC Emergencial, outra parte na PEC do Pedro Paulo. Mas precisamos reavivar essa discussão, porque senão o problema temporário da pandemia, dos gastos emergenciais, pode com muita facilidade se tornar um problema fiscal permanente.