O Banco Central do Brasil foi criado em 1966, mas só três décadas depois, a partir de 1999, a política monetária passou a ser eficaz no combate à inflação.

Isso apenas aconteceu quando, seguindo o exemplo de outros países, o Brasil adotou o chamado “tripé da política macroeconômica,” como explica o economista Affonso Celso Pastore no livro póstumo Caminhos e descaminhos da estabilização – Uma análise do conflito fiscal-monetário no Brasil (Portfolio Penguin; 240 páginas).

O tripé se sustenta no regime de metas de inflação, câmbio flutuante e superávits fiscais primários.

Affonso Celso Pastore

Sem a sustentabilidade fiscal, o tripé fica desequilibrado, exigindo uma política monetária mais conservadora e levando a estresses periódicos no mercado de títulos públicos, como o visto recentemente.

No livro, concluído em dezembro, dois meses antes de sua morte aos 84 anos, Pastore lembra que os prêmios de risco crescem com o aumento da dívida pública.

“Infelizmente, a busca por um espaço fiscal maior parece ser a orientação atual da política econômica,” escreve Pastore. “Espero que a resiliência do regime do tripé da política macroeconômica deixe claro que é necessária uma correção de rumo, e que os responsáveis pela política econômica se beneficiem de nossa experiência histórica.”

De maneira semelhante ao que fazia nas suas lendárias apresentações aos analistas do mercado, Pastore estrutura o livro como uma ‘conversa’ entre a experiência prática e a literatura acadêmica. Assim, conta a história da estabilização monetária brasileira, seus ‘caminhos e descaminhos,’ e aponta os riscos futuros.

No prefácio, Ilan Goldfajn, o atual presidente do BID e ex-presidente do BC, escreve que “a institucionalização do regime atual passou por uma longa busca pelo melhor mecanismo de controle inflacionário – após um período sombrio de altas taxas de inflação e difícil transformação do sistema cambial fixo e administrado para flutuante – e pelo contínuo esforço para alcançar sustentabilidade fiscal.”

Ilan enviou o texto em fevereiro. Não sabia que Pastore estava na UTI e passaria por cirurgias, em decorrência de complicações após uma queda em casa no início do ano.

Cristina Pinotti, a esposa de Pastore, recebeu o email de Ilan e leu o texto em voz alta para o marido.

“Ele ficou comovido e muito satisfeito,” relembra Cristina nos agradecimentos. “Faleceu na noite seguinte, tendo conseguido resumir neste livro as lições mais importantes que aprendeu ao longo da vida como economista que nunca fugiu da boa luta e que deixa um precioso legado para todos nós. Grazie, amore mio!”

Abaixo, a íntegra do prefácio escrito por Ilan.

Escrever o prefácio deste livro é um verdadeiro privilégio. Por várias razões.

A primeira delas é o autor.

Affonso Celso Pastore foi o maior representante e promotor da análise científica de políticas econômicas, do uso de evidências para avaliarmos, aprendermos e implementarmos ideias e reformas que possam beneficiar as sociedades às quais servimos.

Ele esteve sempre à frente de seu tempo no Brasil, desde os primeiros anos na USP. De certa forma, antecipou-se também a agenda global.

O foco no impacto e na efetividade do desenvolvimento, e também no uso da evidência empírica para a avaliação de resultados, faz parte da atual agenda de reformas de bancos multilaterais – e é, hoje, um dos meus esforços principais como presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

A ênfase de Pastore no rigor científico para o estudo de políticas econômicas permeia este livro.

A segunda razão é o tema. O objetivo desta obra é examinar, em uma perspectiva histórica, como chegamos ao atual regime de política econômica e quais foram os caminhos e descaminhos do processo. 

Aqui, Pastore analisa o chamado “tripé macroeconômico” aplicado nas últimas décadas no Brasil – após muitas experimentações e erros – mas cujas raízes e elementos de sucesso o precedem, como os leitores poderão observar logo nos primeiros capítulos.

O tripé da política macroeconômica vem sendo adotado com sucesso por vários governos no Brasil, mas também na América Latina e no resto do mundo. Cresce o consenso sobre a necessidade de manter a inflação baixa por meio de um banco central independente, de utilizar o câmbio flutuante como mecanismo para a absorção de choques e regulação do balanço de pagamentos e de garantir a responsabilidade fiscal para promover a sustentabilidade macroeconômica.

Esse entendimento está alcançando uma estabilidade que nos permite concentrar esforços em fatores fundamentais, como políticas de redução da pobreza, provisão de bens públicos – saúde e educação, por exemplo – e medidas de combate aos efeitos da mudança climática, além de incentivos à inovação e ao crescimento da produtividade.

Um regime econômico que se mantém de um governo para o outro proporciona continuidade e estabilidade institucional, que é o maior atrativo de investimentos, fluxos de capital e talentos que podem melhorar a produtividade e gerar os recursos necessários para ações como atendimento social e oferta de bens públicos locais e globais.

Pastore mostra magistralmente que a construção de uma política econômica não é linear: existem retrocessos, com diversas idas e vindas.

A institucionalização do regime atual passou por uma longa busca pelo melhor mecanismo de controle inflacionário – após um período sombrio de altas taxas de inflação, difícil transformação do sistema cambial fixo e administrado para flutuante – e pelo contínuo esforço para alcançar a sustentabilidade fiscal.

Tenho orgulho de ter acompanhado e contribuído profissionalmente para a construção desse regime. Nas minhas “vidas passadas,” como acadêmico e atuante no setor privado; mais tarde, como diretor e, posteriormente, presidente do Banco Central do Brasil.

Vivi experiências ricas cujas memórias vêm à tona com a leitura do livro. Assumi como diretor do Banco Central na virada do século, apenas um ano após a flutuação cambial e a introdução das metas de inflação.

Foram anos de construção do regime, no qual se estabeleceram tanto os objetivos – velocidade das metas para desinflação – quanto o grau de flexibilidade e credibilidade de que o Brasil precisava. Mas também foram anos de consolidação, na medida em que o regime conseguia se mostrar resiliente aos diversos choques enfrentados pela economia.

A consolidação do arcabouço fiscal foi fundamental durante a minha volta ao Banco Central em 2016, dessa vez como presidente. Outro choque levara a inflação para quase 11% em 2015 e precisávamos acreditar no regime de metas, no contexto do tripé macroeconômico, para baixá-la em torno de 3% em 2017 e mantê-la próxima da meta em 2018, o que nos permitiu reduzir a taxa Selic de 14,25% para 6,5%.

A terceira razão do privilégio de escrever este prefácio é a qualidade. O livro é uma obra de arte.

Não é fácil combinar experiência prática e anos no debate público com conhecimento científico e acadêmico num livro que nos transporta através de décadas de história e políticas econômicas, colhendo lições que servem para olharmos o futuro de outra forma.

Um regime de política econômica cujo sucesso o fez transpassar diferentes governos precisa ter sua história contada para que seja reforçado e trabalhado continuamente, evitando cair na frequente tentação das soluções fáceis e de curto prazo.

Assim vejo a maior contribuição deste livro, que recomendo fortemente, e que tem todos os elementos para se tornar um clássico econômico.

 

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