É alta madrugada no antigo estúdio da EMI Odeon, no bairro de Botafogo, no Rio, e os integrantes da Legião Urbana e o produtor José Emílio Rondeau quebram a cabeça para achar o tom certo da canção Ainda é Cedo.

Jornalista musical com passagens pelas revistas Pipoca Moderna e Somtrês, Rondeau queria dar à música uma bateria marcada, sem tantas viradas, e pediu mais precisão ao instrumentista Marcelo Bonfá. A resposta de Bonfá – “só toco bem quando eu quero!” – doeu mais do que uma surra de correntes dada por algum punk de ocasião.

Rondeau levantou da cadeira em frente à mesa de som, disse “tchau”, e caminhou debaixo de chuva forte para o estacionamento da gravadora. Foi surpreendido por Renato Russo, o vocalista e principal letrista da banda, pedindo para que o produtor reassumisse o posto.

“Não, Juninho, não!,” respondeu Rondeau (Juninho era a forma carinhosa como os amigos chamavam o cantor Renato Manfredini Júnior). Mas o apelo funcionou: no dia seguinte, o jornalista/produtor havia voltado ao estúdio para dar continuidade às gravações do álbum, cujo destaques incluíam Ainda é Cedo.

O imbróglio envolvendo o baterista foi apenas um dos muitos percalços que cercaram o disco de estreia da Legião Urbana, e agora são contados em Será! Crises, Genialidade e um Som Poderoso: Os Bastidores da Gravação do Primeiro Disco da Legião Urbana Contados por Seu Produtor (Editora Máquina de Livros; 112 páginas). (Para comprar, clique aqui.)

Lançado no dia 15 de fevereiro de 1985, um mês depois do primeiro Rock in Rio, o trabalho é um dos maiores álbuns do rock nacional em todos os tempos. E muito de seu mérito – além da qualidade das canções e letras diferenciadas de Russo – está na produção crua e direta imprimida não só por Rondeau como pelo também produtor Mayrton Bahia (que atuou como uma espécie de interventor da EMI) e pelo engenheiro de som Amaro Moço.

O resultado foi um amálgama entre punk rock, folk e disco music, e o pontapé inicial para uma temporada de sucesso do rock de Brasília.

Criada três anos antes em Brasília, a Legião Urbana chegou às mãos de Jorge Davidson, então diretor artístico da EMI, por intermédio de Herbert Vianna, o guitarrista e vocalista dos Paralamas – que então faziam sucesso nas rádios com canções como Vital e sua Moto e Cinema Mudo.

Davidson já tinha se encantado com a letra de Química, que os Paralamas gravaram em seu disco de estreia. “Quando perguntei sobre o autor da música, Herbert respondeu que era de Renato Russo, e que Renato era tudo o que ele gostaria de ser,” disse o produtor.

O próprio vocalista da Legião, contudo, já tinha mandado um material para a companhia sob a alcunha de Trovador Solitário – o nome artístico que adotou na carreira solo antes de se unir ao guitarrista Dado Villa-Lobos e ao baterista Marcelo Bonfá e criar a Legião.

A fita demo contendo o mesmo material do grupo enviado à EMI chegou às mãos de Rondeau no início de 1984, através de Tom Leão, outro jornalista do meio musical do Rio de Janeiro.

Rondeau ficou tão animado que pediu uma reunião com o diretor artístico da EMI e se ofereceu para ser o produtor do disco de estreia do grupo brasiliense.

O que ele mal sabia é que a banda tinha entrado em choque com outros dois profissionais chamados anteriormente para o projeto. O guitarrista Marcelo Sussekind assumira a função de produtor de um single da banda, mas sua escola de rock’n’roll e pop – Sussekind havia sido integrante do Herva Doce e tinha feito um trabalho notável com os Paralamas do Sucesso – bateu de frente com as influências de punk e pós punk do trio. Rick Ferreira, outro grande guitarrista (e escolado por trabalhos com Raul Seixas e Erasmo Carlos) foi recrutado para – cáspite – transformar o trio numa atração de country rock. A ideia era fazer da Legião uma espécie de Bob Seger – uma lenda do gênero americano – caboclo.

A opção por Rondeau se mostrou lógica porque ele, no mínimo, conhecia todos os grupos citados e amados por Renato, Dado e Marcelo.

As gravações de Legião Urbana, o álbum, se iniciaram em junho de 1984 e trouxeram um novo personagem – Renato Rocha, o Negrete, que assumiu o baixo depois de Russo ter cortado os pulsos numa tentativa de suicídio.

A partir dessa data, Rondeau faz um diário precioso das gravações, auxiliado pelos depoimentos de Dado e Marcelo (os dois sobreviventes, visto que Russo morreu em 1996 e Rocha em 2015), Mayrton Bahia e Amaro Moço.

O resultado é um documento histórico das gravações de um clássico do rock brasileiro e também do início do mercado do gênero no País: a superação da falta de habilidade técnica, da falta entendimento de como o rock, o punk e o pós punk deveriam soar (visto que as gravadoras eram mais acostumadas à produção de MPB), e de entender uma geração que passaria a ser dominante nos anos seguintes.

Legião Urbana, o disco, foi sucedido por outras estreias importantes, como Revoluções por Minuto, do paulistano RPM, Mudança de Comportamento, do também paulistano IRA!, e O Concreto já Rachou, um mini LP da Plebe Rude, outro destaque do rock brasiliense.

Eles e mais outros tantos nomes formariam o que mais tarde se chamou de “rock brasileiro”. Ainda que houvesse bandas do gênero em São Paulo e nos outros estados em 1970, foi a primeira vez que o rock se tornou comercial e vendável.

Será! é dividido em duas partes, igualmente saborosas. Na primeira, os acontecimentos que o levaram a assumir a produção do disco, com direito a todas as confusões que essa decisão trouxe para ele. Segundo, um faixa a faixa, que conta a “novela” que foi trabalhar o álbum. Uma novela, diga-se, com final feliz.

Ah, sim. Ainda é Cedo foi um sucesso na rádio. Mas a versão que tocou foi um remix produzido por Rondeau e Mayrton Bahia. Dessa vez, sem malcriação do baterista.