Judeus do mundo inteiro comemoraram há poucos dias a festa de Shavuot. Comemorar significa lembrar algo em conjunto. Mas de que exatamente devemos nos lembrar em Shavuot?

Às vezes, no Judaísmo, os debates mais atuais são também os mais antigos. Shavuot nos convida a uma reflexão sobre uma questão tão antiga quanto fundamental: a questão da identidade judaica. O que é ser judeu? É viver num Estado judaico ou, na diáspora, pertencer a um grupo étnico? É uma questão de pertencimento ou de fé?

A Torá – o Antigo Testamento ou Pentateuco – nos dá uma resposta muito interessante. A certa altura da história, os israelitas deixam de ser uma família – os filhos de Jacob – para se tornarem uma Nação. Mas há duas definições da identidade judaica na Torá: a primeira, que nos é dada na mesa do seder de Pessach: “um arameu errante era meu pai. Ele desceu ao Egito e ali peregrinou. Eram poucos em número. E lá se tornou uma Nação.”

Já em Shavuot, aos pés do Monte Sinai, antes de receber os Dez Mandamentos, os judeus recebem uma nova identidade: “se vocês me obedecerem plenamente e guardarem a minha aliança, então dentre todas as Nações, vocês serão o meu tesouro, porque toda terra é minha. Vocês serão para mim um Reino de sacerdotes e uma Nação abençoada.”

Como conciliar a identidade de Pessach com a de Shavuot, se a Torá é uma só?

Segundo Jonathan Sacks, o saudoso rabino e membro da Câmara do Lordes do Reino Unido, há duas maneiras pelas quais indivíduos se juntam para formar uma Nação.

A primeira se dá quando eles enfrentam um inimigo comum. Foi isso que aconteceu com os israelitas no Egito, cujo sofrimento na escravidão os forjou como um grupo num destino comum. A palavra em hebraico para esse ente coletivo é am, povo.

Mas no Sinai, os judeus se tornaram uma Nação em um sentido completamente diferente. Eles se tornaram um corpo político, tendo a Torá como sua Constituição escrita. A palavra hebraica para isso é edah, congregação.

Um am tem o seu destino traçado pelo que aconteceu no passado. Uma edah é definida pelo que ela é chamada a fazer no futuro. Sacks arremata lindamente: “ser judeu é tanto pertencer a um am (um povo unido por um destino comum selado no passado) como a uma edah (uma comunidade que compartilha valores a serem realizados no futuro). Mais precisamente, é cumprir a jornada de um para a outra.”

Há 126 anos, no verão de 1897, uma reunião realizada na pequena cidade suíça de Basileia mudaria para sempre o que parecia ser o destino inexorável do povo judeu.

O idealismo e a visão pluralista avant la lettre (à frente de seu tempo) do advogado austro-húngaro Theodore Herzl juntou judeus religiosos, não religiosos e até anti-religiosos de toda a Europa em torno do sonho acalentado ao longo de séculos por inúmeras gerações: o restabelecimento do Lar Nacional do povo judeu.

O que os unia, no entanto, era um medo comum: o antissemitismo. Os 126 anos transcorridos do I Congresso Sionista até os dias de hoje testemunharam tanto o pesadelo do Holocausto e da destruição quanto o sonho da restauração da soberania do povo judeu sobre a sua terra, com a fundação do Estado de Israel.

Embora o movimento sionista tenha restaurado a soberania do povo judeu como um am, um povo unido por um destino comum, a tarefa de transformá-lo numa edah, uma verdadeira comunidade de valores compartilhados, ainda está por ser realizada. Foi a isso que Sacks chamou, profeticamente, de “a jornada dos judeus rumo a um segundo Shavuot.”

Vale lembrar o que estava escrito na Declaração de Independência de Israel, lida por David Ben Gurion, em 14 de maio de 1948:

“Nós declaramos que a partir do término do Mandato à meia-noite, nesta noite de 14 para 15 de maio de 1948, e até o estabelecimento dos devidos órgãos eleitos do Estado em concordância com uma Constituição, a ser elaborada pela Assembleia Constituinte até o dia 1º de outubro de 1948, o atual Conselho Nacional deverá atuar como Conselho Provisório de Estado, e seu órgão executivo, a Administração Nacional, deverá constituir o Governo Provisório do Estado de Israel.

O Estado de Israel estará aberto à imigração de judeus de todos os países de sua dispersão; promoverá o desenvolvimento do país para o benefício de todos os seus habitantes; terá como base os preceitos de liberdade, justiça e paz ensinados pelos profetas hebreus; defenderá a total igualdade social e política de todos os cidadãos, sem distinção de raça, credo ou sexo; garantirá liberdade total de consciência, culto, educação e cultura; protegerá a santidade e a inviolabilidade de santuários e Lugares Sagrados de todas as religiões; e se manterá fiel aos princípios da Carta das Nações.”

No último dia 14 de maio, os judeus de todo o mundo celebraram o Yom Ha’atzmaut – o Dia da Independência do Estado de Israel, agora um senhor de 75 anos. Aquela Assembleia Constituinte, que deveria ter aprovado uma Constituição até 1o de outubro de 1948, está “em mora” há mais de 74 anos. Israel até hoje não tem uma Constituição escrita.

A questão da identidade judaica e, de resto, do próprio Estado de Israel, mais uma vez, está no centro do debate político israelense e das comunidades judaicas do mundo inteiro.

Qual a natureza do Estado de Israel: um Estado democrático ou um Estado judeu?

Embutidos nessa pergunta, 2.000 anos de incompreensão, ódio e preconceito reafloram, como se Israel estivesse diante de um dilema moral incontornável: abdicar de sua identidade como Estado judeu, como condição para manter-se democrático, ou abrir mão da democracia para se igualar a outros regimes teocráticos opressivos do Oriente Médio.

Não há resposta certa para essa pergunta, simplesmente porque não há resposta certa para uma pergunta errada. A vocação de Israel é ser um Estado judeu e democrático, mediante uma solução constitucional que permita o convívio de todos os seus cidadãos, com igual liberdade para serem diferentes.

A crise política atual em torno da proposta de Reforma do Poder Judiciário levou Israel a um impasse político. As Forças de Defesa, que derrotaram todos os inimigos externos, agora parecem impotentes para resolver um conflito interno que divide os próprios cidadãos israelenses em torno dessa questão identitária essencial.

Não custa lembrar que, mais ou menos com a mesma idade que tem hoje o Estado de Israel, os Estados Unidos passaram por uma guerra civil que arrasou o país e quase resultou no fim da sua unidade. Lá a questão também era de identidade, e girava em torno de quem deveria ser reconhecido como cidadão norte-americano e que direitos deveria ter.

A preocupação hoje não é apenas com a segurança do Estado de Israel, mas com algo mais fundamental: as mulheres, os gays, os transgêneros e outras minorias continuarão tendo direitos individuais respeitados e em condições de igualdade? Os cidadãos israelenses não judeus continuarão podendo participar da vida política do país? Continuaremos a poder dizer que Israel é a única democracia do Oriente Médio? Ou não haverá mais nenhuma?

Desde 1995, a Suprema Corte de Israel promoveu a chamada “Revolução Constitucional” no país, passando a considerar, em sucessivos precedentes, 11 Leis Básicas como documentos jurídicos dotados de estatura constitucional. Essas leis, no entanto, foram aprovadas pela Knesset (o Parlamento) por quórum de maioria simples, o mesmo procedimento utilizado para aprovar leis ordinárias.

Isso dificulta o reconhecimento do status constitucional das Leis Básicas e fortalece o discurso do atual Governo de Benjamin Netanyahu contra o poder da Suprema Corte de controlar a constitucionalidade de leis e atos do Executivo. De um lado, o Governo e a maioria conservadora pretendem acabar com a independência do Judiciário, o que seria um retrocesso evidente em termos institucionais. De outro, a precariedade do sistema atual, sem uma Constituição escrita dotada de supremacia formal sobre as leis, fragiliza o Judiciário e o próprio Estado democrático de direito.

A Declaração de Independência de Israel invoca os preceitos de “liberdade, justiça e paz ensinados pelos profetas hebreus”. Em Shavuot, a Torá é revelada ao povo, mas não imposta: Deus determina a Moisés que submeta o texto aos israelitas e lhes propõe uma aliança.

De algumas traduções consta apenas a palavra hebraica brit – que significa aliança – enquanto outras acrescentam também a palavra chesed, que se refere a atos de amor desinteressado. Segundo Maimônides, o maior sábio judeu da Idade Média, essa palavra não se encontra ali por acaso.

A aliança entre o povo judeu e Deus é fundada em atos de altruísmo recíproco. Ou seja: assumir compromisso sim, mas não por interesse, e sim por laços de afeto. Traduzindo essa ideia, a poeta brasileira Elisa Lucinda disse: “o amor é uma troca; mas uma troca que só tem graça se for de graça.”

O que isso nos ensina hoje? Que entre ser felizes ou ter razão, precisamos optar por ser felizes. Que os líderes de Israel de hoje precisam sentar-se à mesa, com a inspiração dos Profetas Hebreus de todos os tempos, para encontrar um novo consenso, um novo pacto de afeto que lhes permita escrever uma Constituição democrática, liberal e inclusiva, como previsto na Declaração de Independência.

Só assim Israel poderá superar o atual impasse político que ameaça sua democracia. Só assim, como disse o Rabino Lorde Jonathan Sacks, o povo de Israel estará efetivamente a caminho de um segundo Shavuot.

Gustavo Binenbojm é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.