Em decisão recente, o STF determinou ao Presidente da República que fixe, a partir de 2022, o valor da renda básica de cidadania, instituída por lei em 2004.
Se a decisão da Suprema Corte for operacionalizada de forma inadequada, ela terá um impacto negativo sobre as já precárias contas públicas, e pode não alterar em nada o quadro dramático da pobreza e da desigualdade.
Caso a decisão tivesse seguido a fundamentação do relator da matéria, Ministro Marco Aurélio, os resultados seriam catastróficos. Na relatoria, ele sustentou a fixação de benefício no valor de um salário mínimo, sem qualquer restrição ao grupo de beneficiários. A lei em questão estipula que a renda básica de cidadania seja paga a “todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica.”
Isso significaria pagar R$ 1.100 a 211 milhões de pessoas. A conta seria de astronômicos R$ 2,78 trilhões em um ano, maior que todo o orçamento da União de 2021 que, excluída a amortização da dívida, é de R$ 2,69 trilhões. Mesmo que os R$ 1.100 fossem pagos apenas a pessoas acima de 20 anos de idade, situadas entre os 20% mais pobres da população, a despesa chegaria a impagáveis R$ 406 bilhões: 40% a mais do que se gastou com o auxílio emergencial em 2020, ou 12 anos de Bolsa Família.
Felizmente, o voto divergente do Ministro Gilmar Mendes foi vencedor, e não apenas colocou limites de razoabilidade na decisão, como abriu as portas para a racionalização da política de transferência de renda.
A dúvida é se o Executivo e o Legislativo aproveitarão a oportunidade.
A decisão vencedora limitou o pagamento do benefício ao “estrato da população brasileira em situação de vulnerabilidade socioeconômica (extrema pobreza e pobreza…).” Com isso, afastou-se a implantação imediata da renda universal, que tornaria a conta impagável, como ilustrado acima. Em caso de redução do valor, para respeitar a restrição fiscal, o valor unitário do benefício universal ficaria muito baixo, incapaz de retirar as pessoas da condição de pobreza.
Também relevante é o fato de que a decisão faz “apelo aos Poderes Legislativo e Executivo para que adotem as medidas administrativas e/ou legislativas necessárias à atualização dos valores dos benefícios básico e variáveis do programa Bolsa Família (…) [e] aprimorem os programas sociais de transferência de renda atualmente em vigor, mormente a Lei nº 10.835/2004, unificando-os, se possível.”
Há, portanto, um reconhecimento pela maioria dos Ministros do STF de que é possível melhorar a política de transferência de renda por meio da unificação de programas sociais. E que isso pode levar ao aumento do valor do benefício sem a necessidade de desatinos fiscais.
O voto do Ministro Gilmar Mendes chama atenção para o fato de que a lei objeto da ação, embora enuncie um benefício universal, faz diversas ressalvas quanto a custo e viabilidade. Assim, estipula que a cobertura universal deve ser alcançada em etapas, que o benefício deve respeitar o grau de desenvolvimento do país e as possibilidades orçamentárias, bem como se enquadrar nos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Em seguida, o voto analisa o Programa Bolsa Família e indica que, embora relevante, seus valores estariam defasados. Por isso, “essa política pública necessita de atualização ou repaginação”.
O voto considera “que precisamos urgentemente de uma lei de responsabilidade social (…) que teria por finalidade a melhoria dos índices sociais e econômicos de grupos vulneráveis”. Por outro lado, alerta que “o Estado não pode ser segurador universal e distribuir renda para todos os brasileiros, independentemente da condição socioeconômica”.
Recorrendo ao ditado popular de que “dinheiro não cresce em árvore”, o Ministro Gilmar Mendes alerta que o Estado não fabrica dinheiro, e vive de tributar a população: expansão excessiva de gastos sempre acabariam em inflação ou tributação dos mais pobres, pondo a perder o esforço de redução da pobreza.
Em setembro passado, fizemos proposta de reformulação dos atuais programas sociais de transferência de renda que é consentânea com as diretrizes do voto acima descrito. Coincidentemente, nossa proposta foi chamada de “Programa de Responsabilidade Social.” Parcela substancial de nossa proposta foi adotada pelo Senador Tasso Jereissati em projeto que “institui a Lei de Responsabilidade Social,” mesma expressão adotada pelo Ministro Gilmar Mendes.
O objetivo da nossa proposta é elevar o valor transferido por família, ampliar o universo de pessoas necessitadas que contam com a proteção social e criar condições para as famílias saírem da condição de pobreza. Tudo isso respeitando a restrição fiscal. Descrição detalhada e simulações quantitativas estão disponíveis no sítio do Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP). Uma versão resumida da proposta foi publicada na Folha de S. Paulo.
Na proposta, comparamos os efeitos de diferentes desenhos de programas sociais na redução da pobreza e proteção de famílias em situação de vulnerabilidade. A renda básica universal foi um dos programas menos efetivos entre todos os avaliados. Nossa conclusão é de que programas de natureza focalizada, considerando o histórico brasileiro de capacidade de operação de políticas direcionadas aos mais necessitados, têm um poder muito maior de combate à pobreza e a desigualdades de renda.
O “x” da questão está em fundir programas sociais ineficazes e antiquados, de modo a modernizar os mecanismos de transferência de renda, visando chegar aos mais necessitados. Propusemos a fusão do Bolsa Família com o Seguro Defeso, o Abono Salarial e o Salário Família.
É fundamental investir em informação, ampliando o Cadastro Único de Políticas Sociais, de modo a conhecer quem são e onde vivem os pobres, assim como identificar com rapidez aqueles que caíram na pobreza e necessitam ser incluídos na rede de proteção social. Fazer política de renda mínima sem informação acaba custando muito caro, como demonstrou a farta distribuição de auxílio emergencial a quem dele não necessitava.
Os fatos recentes da política brasileira, contudo, não nos permitem ter otimismo em relação a um desfecho positivo quanto à forma de implementação da determinação do STF. O Congresso Nacional acaba de aprovar um orçamento em que cortou o essencial (dinheiro para a manutenção das políticas públicas) para financiar o secundário (investimentos de caráter eleitoral, de interesse dos parlamentares). Foram nada menos que R$ 18,5 bilhões em emendas parlamentares acima do mínimo obrigatório fixado pela Constituição.
Entre as vítimas do corte está o Censo Demográfico. Um país em que a classe política despreza a importância do Censo não pode ter esperança de que haverá investimento em melhoria do Cadastro Único. Quando o supérfluo se coloca à frente do essencial, é escassa a chance de se racionalizar os programas sociais.
É possível que a decisão do STF seja posta em banho-maria pelo Executivo e o Legislativo. Se isso ocorrer, em 2022, quando ela se tornar uma obrigação, haverá nova judicialização da questão. O resultado provavelmente será um arremedo emergencial e, como tal, precário. Mais um benefício de baixo grau de focalização será criado, com alto custo fiscal e baixa capacidade de redução da pobreza.
Por outro lado, as diretrizes do STF são uma oportunidade política única de dar suporte a uma reforma que, sem a pressão da Suprema Corte, sofreria grande resistência.
O Executivo deveria dar prioridade máxima a uma proposta ousada de unificação de programas sociais, inclusive com a revogação da Lei de Renda Básica Universal e a reestruturação, modernização e ampliação do Cadastro Único. Oportunidades como essa não podem ser desperdiçadas.
Vinícius Botelho é doutorando em economia pelo Insper.
Fernando Veloso é pesquisador da FGV/IBRE.
Marcos Mendes é pesquisador associado do Insper.