“O Direito não serve para inquietar, mas para direcionar condutas e assegurar expectativas legítimas” (Judith Martins Costa – Revista Jurídica Luso Brasileira, 2006).

Para não inquietar, é preciso que não surpreenda com arbitrariedades improváveis, mas, pelo contrário, que se permita previsibilidade, gerando confiança dos administrados em face das decisões legitimamente esperadas por serem reiteração das anteriores compreensões das normas legais, a consubstanciar a Segurança Jurídica.

A Segurança Jurídica tem duas vertentes: uma objetiva, consistente na estabilidade das relações jurídicas; a segunda, subjetiva, produtora da confiança legítima dos administrados na interpretação consolidada das leis, bem como no poder público ao editar seus atos. Logo, protege-se a confiança legítima ao não se provocar modificações capazes de afetar interpretações consagradas de modo imprevisível.

O direito é o que a interpretação for, pois o juiz não é a “boca que diz a palavra da lei”, mas quem analisa os termos da lei, muitos sendo cláusulas abertas, em consonância com o conjunto normativo, em especial em face da Constituição, exigindo-se, portanto, para segurança jurídica, que os Tribunais gerem estabilidade na análise das relações jurídicas, o que se efetiva especialmente por via das Súmulas vinculantes.

Outras duas medidas impeditivas da quebra da confiança e garantidoras da estabilidade estão na colegialidade e na presteza na prolação da decisão, a não se perenizar nas mãos do julgador sem ir para julgamento.

Decisões individuais, monocráticas, e retenção dos autos por longo do tempo são dois empecilhos à segurança jurídica e à proteção da confiança legítima dos administrados que vêm sendo verificados na atuação da nossa Suprema Corte.

Cientes deste prejuízo à própria respeitabilidade da instituição, o Supremo Tribunal Federal procurou remediar. Com efeito, por iniciativa da então presidente Rosa Weber, o STF promulgou a Emenda Regimental 58 de dezembro de 2.022 para solucionar a questão relativa ao excesso de decisões monocráticas, visando a promover a colegialidade.

Assim, disciplinou-se que, em caso de urgência, para a proteção de direito suscetível de grave dano, pode ser liminar concedida monocraticamente pelo Relator, mas cumpre submetê-la de imediato ao Plenário ou à Turma para referendo.

De outra parte, buscou-se limitar o tempo para o processo retornar a julgamento após pedido de vista de ministro. Estabelece-se, então, que um ministro, ao solicitar vista dos autos, deve apresentá-los em 90 dias para continuidade do julgamento. São ambas medidas adequadas para solucionar duas questões que prejudicavam gravemente a Corte como ente coletivo. Resta que tais disposições regimentais sejam respeitadas.

Duas recentes decisões monocráticas, no entanto, surpreenderam, ambas ligadas ao grupo J&F: a suspensão temporária da multa estabelecida no Acordo de Leniência e a determinação de investigação da organização não-governamental Transparência Internacional.

As dúvidas que revestem ambos os casos justificariam que não houvesse decisão monocrática, para se ter em matéria tão sensível uma posição pensada pela Corte em sua integralidade, como colégio de magistrados que é.

Desta maneira, a Corte teria condições de refletir se cabe a suspensão em face de que a leniência relata fatos similares aos constantes da delação, que veio a ser homologada pelo próprio Supremo Tribunal Federal. De outra parte, o acordo de leniência e a delação, negociadas longamente, foram relevantes para que não houvesse perseguição criminal e houvesse redução de pena pecuniária nos Estados Unidos e na Suíça.

Além disso, a possível contaminação dos vícios decorrentes das relações entre Juízo e Ministério Público, diga-se Moro e Dellagnol, não se verifica no caso da J&F e de seus diretores, pois os fatos ilícitos não foram objeto de perseguição pela Operação Lava Jato, em curso na 13ª. Vara Criminal de Curitiba, pois oriundos das Operações Greenfield, Sepsis e Cui Bono, que tramitaram em outras comarcas.

Outra dúvida, bem levantada pelo Ministério Público Federal em recurso contra a decisão monocrática de suspensão da multa, está na incompetência do Ministro Toffoli, pois não se trata de acordos decorrentes da Operação Spoofing, na qual teria havido ação conluiada entre juiz e promotor, esta sim de sua atribuição, mas de fatos trazidos à luz por outras operações, sujeitas a Juízos diversos do da 13ª Vara de Curitiba, de titularidade de Moro.

A sensibilidade dos temas e as dúvidas que revestem as alegações da J&F mostram a correta posição da Emenda Regimental 58 do Supremo ao limitar a possibilidade de decisão monocrática à hipótese de urgência na qual se apresenta fora de dúvida a provável criação de dano grave.

Outra decisão que confronta a determinação de prestigiar-se a colegialidade, afastando-se a imposição de decisão monocrática, está na determinação de investigação de possíveis ilegalidades praticadas pela Transparência Internacional, que assumira no Acordo com a J&F a tarefa de aconselhar a aplicação de mais de R$ 2 bilhões destinados a obras sociais.

Este pedido de verificação de possível irregularidade de atuação da Transparência Internacional, em relação às importâncias decorrentes de multa aplicada à J&F, foi inicialmente apresentado ao Superior Tribunal de Justiça, STJ, em fevereiro de 2021, e recentemente enviada ao STF.  Clara, destarte, a inexistência de urgência da medida que deveria ser analisada pelo Plenário ou pela Turma.

A leitura do Anexo ao Acordo cria muitas dúvidas acerca da pretendida acusação do Deputado Rui Falcão de que teria havido utilização indevida de verbas públicas por entidade sediada em Berlim. Na petição do Deputado, tira-se esta ilação como evidente, quando tal conclusão é passível de indagação em face dos termos do acordo de colaboração da Transparência Internacional com o Ministério Público, para que com sua experiência oriente e dê visibilidade aos vultosos meios destinados a obras sociais, visando ao cumprimento de regras de integridade.

Basta a leitura dos termos do Memorando firmado entre o Ministério Público Federal e a Transparência Internacional para ser invadido por muitas dúvidas se haveria alguma irregularidade neste acordo de colaboração, que visava à orientação de correta e boa aplicação de recursos em obras de cunho social.

Bastante significativo é um parágrafo da carta de 24 de agosto de 2017, na qual consta, em negrito: “A TI atuará de maneira estritamente voluntária sem qualquer tipo de cobrança de honorários e taxa de administração”.

Verifica-se, portanto, que cumpre com urgência tal decisão monocrática ser objeto de apreciação pelo Colégio dos Ministros, reclamo este que vem de ser com ênfase apresentado pela Ordem dos Advogados de São Paulo, em comunicado do seguinte teor, assinado por seu Vice-Presidente, Leonardo Sica:

“As recentes decisões monocráticas do Supremo Tribunal Federal têm suscitado preocupações à sociedade brasileira diante da concentração excessiva de poder em mãos individuais”.

Esta manifestação traduz claramente os anseios de segurança jurídica da sociedade civil, na expectativa de que se concretizem as disposições constantes da Emenda Regimental 58, editada ao tempo da presidência da Ministra Rosa Weber.

Dessa maneira, por outro lado, evita-se o conflito entre poderes espelhado pela aprovação no Senado da PEC 08/21 que estatuiu semelhantes disposições já previstas na Emenda Regimental 58 do próprio STF. Com a aplicação imediata das disposições da Emenda Regimental 58 afastam-se as preocupações da sociedade brasileira, bem referidas na Nota expedida pela Ordem.

O envio das duas decisões monocráticas para análise do Plenário, dada sua relevância, é uma resposta que a Suprema Corte deve à sociedade para que não se pense servir o Direito para inquietar.

Miguel Reale Júnior foi professor titular de direito penal da Universidade de São Paulo e ministro da Justiça do Brasil.