A taxa Selic, fixada pelo Comitê de Política Monetária e formada pela média das negociações de títulos públicos registradas no Sistema Especial de Liquidação e Custódia, é também, desde 1995, o principal indexador dos tributos federais.

Mas além de seus propósitos macroeconômico e fiscal, a Selic tem outra importante função: por força do artigo 406 do Código Civil, ela é a taxa legal de juros no Brasil.

A taxa legal, como diz o nome, é uma taxa de juros estabelecida em lei com duas principais finalidades: incidir no caso de não cumprimento de qualquer obrigação (os juros de mora) e remunerar o uso de capital alheio quando a lei determinar que isso ocorra mesmo na omissão as partes (os juros compensatórios resultantes de lei).

Além dessas finalidades, até 2024 os juros legais também funcionavam como um teto na contratação de juros por pessoas físicas e jurídicas não financeiras, imposto pelo art. 591 do Código Civil.

Antes de 2003, quando entrou em vigor o atual Código Civil, a taxa de juros legais no Brasil era fixa, de 6% ao ano, podendo ser aumentada para até 12% ao ano por vontade das partes. E os mais velhos se lembram que essa taxa máxima perambulou pela Constituição, até ser de lá retirada, também em 2003.

Com a adoção de uma taxa flutuante como a Selic, o regime geral brasileiro aderiu ao modelo adotado em todo o mundo, em que as estimativas de elevação e redução da inflação são refletidas no custo das dívidas durante o período de incidência de juros legais, evitando o enriquecimento sem causa – do credor ou do devedor, a depender das circunstâncias.

Apesar disso, aquela alteração enfrentou resistência, seja por apego à danosa comodidade de uma taxa fixa, seja pelo temor de dupla reposição da inflação, pois o Código Civil determina a incidência concomitante de correção monetária e juros.

A solução para esse segundo problema era simples, e foi adotada: primeiro pelo Superior Tribunal de Justiça, que vedou a cumulação da Selic com a correção monetária, e mais tarde pela Lei 14.905 de 2024, que mandou aplicar o IPCA como índice de correção monetária e deduzi-lo da Selic do mesmo período – e considerar zero a taxa de juros nos períodos em que o IPCA superar a Selic.

Além disso, a Lei 14.905 retirou do Código Civil a limitação à liberdade de fixar tanto as taxas de juros em um contrato quanto a sua capitalização – sem prejuízo, naturalmente, das hipóteses de lesão e de onerosidade excessiva. E ainda restringiu grandemente o campo de incidência da chamada Lei da Usura (Decreto 22.626, de 1933), tornando-o praticamente inexistente.

Acontece que o Projeto de Lei 04/2025, dito de revisão do Código Civil, apresentado ao Senado Federal em 17 de abril de 2024, ignorou a Lei 14.905 e insistiu na proposta do anteprojeto que lhe deu origem, de fixar os juros legais em uma taxa fixa, de 1% ao mês, ignorando o padrão mundial e a lógica econômica. E, voltou a limitar a liberdade das partes de fixar os juros e a sua capitalização – embora, sem qualquer justificativa, apenas para os juros de mora.

O que mais surpreende, nessa nova investida, é que com ela se pretende retornar a um cenário criticado pelo próprio Senador Rodrigo Pacheco, que em 2022 propusera a adoção de uma taxa de juros flutuante, no projeto de lei que terminou redundando, em conjunto com outro, na Lei 14.905.

Agora, na exposição justificativa do Projeto de Lei 04/2025 apresentado pelo mesmo Senador Pacheco, diz-se querer resolver “as dúvidas insuperáveis” da “redação do atual artigo 406 do Código Civil” – ignorando-se que as dúvidas ditas “insuperáveis” foram superadas em 2024, pela Lei 14.905.

A exposição justificativa também diz que se preferiu a taxa fixa à flutuante “por segurança jurídica” – sem esclarecer por que uma taxa fixa seria mais segura que uma flutuante, quando a lógica econômica deveria prevalecer, em se tratando da remuneração do capital não restituído ou emprestado.

São muitas as razões pelas quais as opções legislativas feitas em 2002 e 2024 – com o Código Civil, pela adoção de uma taxa legal de juros flutuantes, e com a Lei 14.905, pela liberdade de pactuação da taxa de juros – devem ser preservadas.

O Código de 2002 nos livrou de um regime de juros fixos anacrônico e dissonante do padrão internacional, enquanto a Lei 14.905 afastou graves incertezas decorrentes das limitações da Lei da Usura à liberdade de constituir obrigações “nos mercados financeiro, de capitais ou de valores mobiliários”, “contratadas entre pessoas jurídicas”, “fundos ou clubes de investimento”, ou “representadas por títulos de crédito ou valores mobiliários”.

Por isso, quanto ao tema dos juros, o equívoco do Projeto de Lei 04/2025, ao manter os termos do Anteprojeto que lhe deu origem, é tão flagrante que poderia ser atribuído ao esquecimento de que, entre o Anteprojeto e o Projeto, sobreveio uma lei federal (a Lei 14.905) tratando adequadamente do tema.

Seja como for, resultado de um lapso ou da renitência na adoção de uma solução anacrônica e antieconômica, o Projeto de Lei 04/2025, quanto ao tema dos juros, não merece prosperar, sob pena de ressuscitar riscos e ineficiências nos contratos e no mercado de capitais no Brasil.

Marcelo Trindade é advogado e professor da PUC-Rio. Foi diretor e presidente da Comissão de Valores Mobiliários.