O Congresso se prepara para mudar não só quem elegemos, mas como elegemos.

Se avançar, a proposta articulada por Hugo Motta (Republicanos-PB) e relatada por Domingos Neto (PSD-CE) pode redefinir a relação entre o eleitor e o poder político no País.

Apesar de estar em estágios iniciais, a proposta conta com a simpatia de importantes líderes políticos, como o presidente do PSD, Gilberto Kassab.

O plano é ambicioso: instituir o voto distrital misto para as eleições de 2030.

Hugo Motta ok

O eleitor passaria a ter dois votos: um para escolher o seu representante direto (no distrito onde vive) e outro para o partido de sua preferência. Metade das cadeiras seria ocupada pelos vencedores distritais. A outra metade, distribuída proporcionalmente, conforme a força de cada legenda.

É uma mudança estrutural.

Hoje os deputados no Brasil são eleitos pelo sistema proporcional de lista aberta. O eleitor vota em um candidato ou em um partido, mas todos os votos são somados dentro de cada legenda. O total de votos válidos do estado é dividido pelo número de cadeiras disponíveis. O resultado é o quociente eleitoral, que indica quantos votos são necessários para eleger um deputado. Cada partido conquista um número de vagas proporcional à soma de seus votos, e essas vagas são preenchidas pelos candidatos mais votados dentro da sigla.

Na prática, isso significa que o voto individual ajuda o partido, e não apenas o candidato escolhido. Um político muito votado pode “puxar” colegas menos conhecidos do mesmo partido, e o eleitor muitas vezes não sabe quem realmente elegeu.

Este sistema favorece partidos com boas máquinas eleitorais, estimula campanhas caras e amplia a distância entre representante e representado, já que o deputado não tem um território específico a quem responder, e sim um estado inteiro.

A defesa do distrital misto parte de um diagnóstico simples: o eleitor brasileiro não tem dono. Deputados são escolhidos em disputas complicadas e caras, com campanhas que varrem dezenas de municípios a um custo altíssimo. O vínculo entre voto e representação é quase abstrato, alimentando o desinteresse e a impunidade política.

A promessa do novo sistema é criar representação com endereço: campanhas mais curtas, distritos menores, custo reduzido, e um deputado com base geográfica clara.

Em tese, o eleitor poderia cobrar diretamente o seu representante. As disputas ficariam mais focadas em temas locais. E os partidos, ao mesmo tempo, continuariam a disputar metade das cadeiras no campo proporcional.

Esta combinação de voto territorial e voto partidário é o que a Alemanha e a Nova Zelândia usam há décadas. Lá o modelo é conhecido como MMP (Mixed-Member Proportional), e é apontado como um dos sistemas que melhor equilibram representatividade e governabilidade.

Na Alemanha, por exemplo, o eleitor vota duas vezes: um candidato e um partido. A distribuição final de cadeiras é ajustada para refletir o voto partidário nacional, mantendo a proporcionalidade e garantindo que o Parlamento não se transforme em um mosaico caótico de micro-partidos.

Para seus defensores, o voto distrital misto reduz o personalismo tóxico e a capacidade de infiltração de poderes paralelos nas campanhas por conta da combinação de distritos menores e campanhas mais baratas.

O presidente da Câmara, Hugo Motta, já disse que a proposta pode “evitar a eleição de representantes do crime organizado.”

O voto distrital misto também reduziria o “efeito Tiririca”, onde um candidato supervotado leva colegas ao Congresso. O estímulo para candidaturas de celebridades diminuiria.

Ainda assim, há riscos e preocupações. A criação dos distritos é uma operação política de altíssimo impacto: desenhar fronteiras eleitorais é decidir quem pode ganhar. Uma linha no mapa pode determinar o futuro de uma bancada.

O risco de gerrymandering (manipulação geográfica para favorecer partidos) é real. O Brasil ainda não possui tradição ou capacidade técnica consolidadas para isso. É preciso olhar para outros países, como os Estados Unidos, onde o gerrymandering é um risco real e contínuo ao ambiente democrático.

Se o voto distrital misto fosse aplicado hoje, os partidos com lideranças regionais consolidadas (MDB, PSD, União Brasil, PP e Republicanos) provavelmente se beneficiariam. Eles têm capilaridade e redes municipais para disputar distritos com vantagem.

O PT e o PL, com bases eleitorais intensas, mas concentradas, teriam ganhos e perdas regionais. O PT, por exemplo, é forte nas capitais e nas periferias urbanas, mas poderia perder espaço em áreas do interior. Ambos os partidos poderiam se beneficiar do voto partidário, mas teriam que batalhar para traduzir a força nacional em soluções locais.

Já partidos menores e ideológicos – como PSOL e NOVO – dependeriam das vagas proporcionais para sobreviver.

A mudança tem capacidade de reordenar o poder, deslocando a força da televisão, marketing e celebridades para o território e o capital político local. Mais do que um ajuste eleitoral, a proposta em discussão é uma tentativa de recalibrar a relação entre política e sociedade.

Lucas de Aragão, é mestre em Ciência Política e sócio da Arko Advice.