No Pacote de Ajuste Fiscal anunciado recentemente pelo Ministro da Fazenda foi incluída uma Medida Provisória (MP 1.160/23) para restabelecer o chamado “voto de qualidade”: na dúvida, os autos de infração lavrados pelo Fisco e questionados pelo contribuinte no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) voltam a ser resolvidos favoravelmente ao Fisco.

O voto de qualidade é um voto de minerva que, até 2020, só podia ser dado por um representante do Fisco. Como as turmas de julgamento do CARF são paritárias, com representantes do Fisco e dos contribuintes, o número de julgadores tem que ser par (atualmente são 3 representantes para cada lado, distribuídos em turmas e câmaras, totalizando 130 julgadores). Daí a impossibilidade de, por exemplo, termos um número ímpar de julgadores e tornar desnecessário o voto de qualidade.

O Ministro Fernando Haddad e o atual presidente do CARF argumentam que não existe em outros países um tribunal administrativo com representantes do contribuinte, e que o Brasil estaria mais uma vez sendo a “jabuticaba”. O secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, e o subprocurador -geral da Fazenda Nacional, Gustavo Caldas, também argumentaram isso usando relatórios da OCDE, do CIAT e do TADAT, na Folha de São Paulo de 24 de janeiro.

Na exposição de motivos da MP isso não apareceu. O argumento foi de que antes de 2020, quando os empates eram favoráveis ao Fisco, foram mantidas cobranças no total de R$ 177 bilhões. Após a mudança, a decisão de favorecer o contribuinte em caso de empate teria causado prejuízo da ordem de R$ 59 bilhões anuais.

O debate está completamente fora do lugar.

A questão não é “quem vai levar o voto de qualidade pra casa”, a questão é, por que existem R$ 177 bilhões em autos de infração?

Por que foram mantidos esses autos de infração se havia dúvidas sobre a interpretação da legislação tributária? (afinal, é isso que o empate demonstra). Por fim, o que fez o Estado para solucionar essas divergências e dar segurança jurídica às empresas?

O CARF é um tribunal administrativo onde se julgam recursos dos contribuintes contra autos de infração do Fisco. A grande questão é que os autos de infração não são lavrados para mera cobrança de um tributo devido e não pago. São casos em que há divergência sobre a interpretação da legislação tributária: o contribuinte interpreta as regras tributárias e paga X. O Fisco fiscaliza a empresa, discorda da interpretação do contribuinte, e lavra um auto de infração para cobrança de X+1, acrescido de juros SELIC e multas de 75% (essa é a multa standard, e pode ser dobrada nas situações em que o Fisco interprete que houve fraude). Virou até “meme” o recente caso do CROCS julgado pelo CARF: é pantufa ou sapato?

Nesse cenário não se discute (i) quais são os temas objeto de divergência, (ii) quanto eles representam em termos de valor no estoque de R$ 1 trilhão do CARF, (iii) porque há empate, e (iv) como poderia ser feita a seleção de julgadores imparciais num tribunal não paritário, como ocorre em outros países. A discussão está focada no sintoma, e não na doença.

Não podemos construir um sistema de sanções, autuações e contencioso tributário que parta da premissa de que as empresas, grandes, médias ou pequenas, estão em conluio para evitar o pagamento de impostos. Não é contribuinte x Fisco ou o inverso. Temos que ser todos a favor de um ambiente com mais previsibilidade.

O desempate pró-contribuinte ou o retorno do voto de qualidade não beneficiam nossa sociedade, nossa economia, nosso país. Em ambos os casos não se tem segurança jurídica para o futuro, pois os temas continuam a ser fonte de dúvidas para os contribuintes – a lei não foi ajustada e nem Receita Federal publicou formalmente sua interpretação pública, única e vinculante.

Além disso, criam-se situações anti-isonômicas entre contribuintes: o contribuinte que deu sorte de ser julgado após a extinção do voto de qualidade foi beneficiado, mas muitos outros perderam seus casos no CARF antes disso, e estão aguardando decisões no Judiciário com garantias custosas.

Trabalhamos com pseudosoluções porque não conhecemos os reais problemas. E eles estão muito mais embaixo que o voto de qualidade do CARF.

Vanessa Rahal Canado é coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper. Foi diretora do Centro de Cidadania Fiscal (CCiF) e assessora especial do Ministro da Economia entre 2019 e 2021 para assuntos relacionados à reforma tributária.