Depois do acordo selado no STF, Executivo e Legislativo agora precisarão definir novas regras sobre emendas parlamentares ao Orçamento. 

Tendo em vista que o assunto está constitucionalizado detalhadamente no art. 166 da Carta Magna, uma reforma significativa requer, a princípio, a aprovação de uma PEC.

Mas como o Governo é minoritário no Congresso, e PECs não são sujeitas a veto presidencial, uma PEC traria o risco de as emendas aumentarem e as distorções se aprofundarem. 

Para evitar esse desfecho, o Governo precisará oferecer alguma contrapartida à redução do poder do Legislativo sobre o Orçamento. Outra opção seria evitar uma PEC e tentar limitar e enquadrar as emendas dentro do texto constitucional atual.

PEC

Vejamos inicialmente o que seria uma PEC ideal. Como já argumentamos em artigo anterior, o problema fundamental das emendas é o seu valor excessivo, que já caminha para ¼ das despesas discricionárias totais. Assim, seria importante colocar um teto para o valor total das emendas como proporção das discricionárias. 

O acordo poderia prever uma redução gradual, ano após ano, até se chegar a 10%. Este valor ainda seria dez vezes maior ao que se observa na prática internacional, em que as emendas não passam de 1% das discricionárias. 

Como trava adicional, elas também não poderiam crescer mais do que a inflação, para evitar que um eventual controle das despesas obrigatórias, ao abrir espaço para as discricionárias, elevasse o teto de emendas.

O segundo ponto seria revogar a vinculação do valor mínimo das emendas ao crescimento da receita corrente líquida. Teríamos, então, um teto sem que haja um piso. Note-se que isso elimina a má ideia de usar para as emendas a regra do arcabouço fiscal, que conferiria ao Legislativo um aumento real no valor das emendas de até 2,5% ao ano.

O terceiro ponto refere-se à obrigatoriedade de execução das emendas. Hoje elas podem ser contingenciadas em até a mesma proporção do contingenciamento das demais despesas. Mas nem sempre o são, por temor político do Executivo quanto a represálias do Legislativo. 

Nossa sugestão é de que o contingenciamento seja obrigatório, na mesma proporção das demais despesas. Além disso, a mesma regra deve ser aplicada aos bloqueios, que visam o cumprimento do limite de despesas, o que não ocorre atualmente, pois o § 4º do art. 69 da LDO 2024 veda o bloqueio de emendas individuais e de bancada. 

Em suma, bloqueios e contingenciamentos de emendas deveriam ser obrigatoriamente proporcionais aos realizados nas demais despesas discricionárias.

O quarto ponto seria a extinção das emendas PIX, uma vez que não são rastreáveis e não estão associadas a políticas públicas. São meras doações aos governos subnacionais receptores.

Em contrapartida, o Parlamento passaria a ter liberdade para alocar o montante total de emendas da forma como definida por suas regras internas, sem rigidez constitucional ou legal na divisão entre emendas individuais, de bancada ou comissão. Os únicos requisitos seriam a identificação de autoria e a rastreabilidade.

Outra contrapartida seria a proibição daquilo que chamaremos aqui de “emendas do Executivo”. 

Elas são transferências similares às emendas parlamentares, só que chegam aos municípios e estados escolhidos pelo Presidente da República ou pelos ministros de Estado. Como exemplo, temos notícias recentes como: “Lula manda, e ministério aprova R$ 143 milhões a aliado em 24 horas ou “Lula favoreceu cidades governadas por aliados em SP e RJ, com R$ 1,4 bilhão”.

Assim como as emendas, esses auxílios definidos de forma ad hoc desequilibram o jogo político. Uma das defesas das emendas parlamentares é justamente dizer: “se o Presidente pode, nós também podemos”. É quase uma adaptação do bordão de Stanislaw Ponte Preta: “Restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos!”

Dados do Sistema Siga Brasil mostram que, no ano passado, transferências voluntárias da União a estados e municípios não decorrentes de emendas somaram R$ 12,4 bilhões em valores empenhados, e R$ 7,3 bilhões na soma de valores pagos, incluindo restos a pagar.

Não é pouco dinheiro. E não é só este o montante que pode ter direcionamento político. Programas regulares de investimento dos ministérios também podem ter direcionamento como, por exemplo, a escolha de onde construir um novo instituto federal de ensino ou um hospital.

Seria preciso impor limitações ao Executivo sem engessar excessivamente as decisões de políticas públicas. Nossa proposta seria a imposição de critérios e fórmulas, obrigatoriamente publicizados, para os auxílios e contribuições em dinheiro aos estados e municípios, quando não decorrentes de emendas parlamentares. Dessa forma, o Legislativo poderia acompanhar a execução das principais políticas públicas, saber o grau de adesão delas aos critérios e fórmulas previamente definidos, e cobrar explicações quando julgasse necessário.

Transparência

Quanto à transparência, o que se observa é que tanto as emendas parlamentares quanto as “emendas do Executivo” são rastreáveis apenas até chegarem no caixa do município ou estado receptor. 

Sabemos, por exemplo, que a emenda do deputado X entregou R$ 10 milhões ao fundo municipal de saúde do município Y. Depois fica mais difícil acompanhar o que o município Y fez com o dinheiro.

Daí a necessidade de um sistema exclusivo, gerido no plano federal e com acesso amplo da CGU e do TCU, para que esses recursos fossem liberados para gasto. 

O município ou estado beneficiário só poderia liberar o recurso se fizesse as licitações e todos os processos de pagamento dentro deste sistema. Isso permitiria a rastreabilidade da despesa até o final, e permitiria aos órgãos de controle avaliar indícios de fraudes nas licitações ou outras irregularidades de forma mais fácil, sem precisar esquadrinhar diferentes bases de dados espalhadas pelo País.

Ao mesmo tempo, auditorias da CGU, baseadas em sorteios de municípios e estados a serem auditados, como já realizado no passado, deveriam voltar a ser rotineiras e focadas nas emendas parlamentares e “emendas do Executivo”.

Opção alternativa à PEC

No caso de a apresentação de uma PEC ser avaliada como risco excessivo de ampliação das emendas e aprofundamento das distorções atuais, haveria o caminho de se legislar ou interpretar a legislação no sentido de reduzir algumas prerrogativas do Legislativo que parecem excessivas quando comparadas à experiência internacional.

O principal ponto seria deixar claro que a participação do Legislativo no processo orçamentário se encerra quando o projeto de lei aprovado é encaminhado para sanção presidencial. Apenas se houver veto presidencial caberia nova manifestação do Legislativo.

Mundo afora, quem cuida da execução do Orçamento é o Poder Executivo. Parece óbvio, mas no Brasil é diferente: o autor da emenda aprovada é uma espécie de “dono” daquele recurso, e durante o ano da execução define onde e quanto do recurso aprovado será empregado em um ou mais projetos, mesmo que em localidades diferentes. Nas emendas de autoria coletiva costuma haver divisão dos recursos em partes de interesses individuais, coordenada por um “dono” do recurso.

Parece haver invasão de competência do Executivo, ferindo a cláusula pétrea de separação dos poderes, em dispositivos da LDO de 2024 que normatizam essa interferência do Legislativo na execução do Orçamento. É o caso, por exemplo, do art. 52, § 4º e do art. 82.

Além disso, caberia regulamentar de forma mais conservadora dois dispositivos constitucionais. O primeiro estaria nos trechos da Constituição que lidam com o poder do Congresso para alterar o orçamento:

Art. 166…..

……

    • 3º As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso:

….

II – indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa, excluídas as que incidam sobre:

    1. a) dotações para pessoal e seus encargos;
    2. b) serviço da dívida;
    3. c) transferências tributárias constitucionais para Estados, Municípios e Distrito Federal; ou

III – sejam relacionadas:

    1. a) com a correção de erros ou omissões; ou
    2. b) com os dispositivos do texto do projeto de lei.

 A leitura mais rigorosa da Constituição deveria, em primeiro lugar, vedar a mudança da estimativa de receita orçamentária ou o corte de despesas obrigatórias pelo Congresso. Somente o Executivo poderia alterá-las. Usualmente o Congresso alega “erros e omissões” na estimativa de receitas ou projeção de despesas obrigatórias para encaixar mais emendas, sem alterar a previsão de resultado primário.

Em segundo lugar, ficaria vedada a prática, usualmente validada pelas LDOs, de determinar ao Executivo a destinação de uma reserva de recursos a ser utilizada em emendas parlamentares (na LDO 2024, este comando está no art. 13, § 5º). Para propor uma emenda, um parlamentar, comissão ou bancada partidária teria que indicar claramente qual dotação orçamentária de despesa seria cortada para dar lugar ao novo gasto proposto.

Outro dispositivo a ser reforçado seria:

Art. 166…

……

    • 13. As programações orçamentárias previstas nos §§ 11 e 12 deste artigo não serão de execução obrigatória nos casos dos impedimentos de ordem técnica.

Neste caso, seria feita uma definição abrangente da expressão “impedimento de ordem técnica,” aí incluindo, por exemplo, a desproporção de recursos transferidos a um município frente ao que se estaria transferindo a municípios de população e índice de desenvolvimento humano similares, situados na mesma região.

A dificuldade desta opção é a necessidade de análise individualizada de milhares de emendas. Para superar este problema, uma alternativa seria a definição prévia, pelo Executivo, em um banco de projetos, das obras passíveis de receber emendas e de balizas de valores que garantissem proporcionalidade entre todos os municípios.

Helio Tollini é consultor de orçamento da Câmara dos Deputados.

Marcos Mendes é economista e pesquisador associado do Insper.