As classes populares não são mais as mesmas de 20 anos atrás, quando o Presidente Lula iniciou seu primeiro mandato. Pesquisas apontam que suas crenças e seus valores mudaram, caminhando paulatinamente na direção daquelas de classe média típica de nações mais desenvolvidas.
O surgimento da chamada nova classe média, na primeira década deste século – fenômeno também observado em outros países emergentes, na esteira do boom de commodities –, foi acompanhado de uma mudança nos valores desse grupo, em um curto intervalo entre duas gerações.
Um exemplo é a valorização da educação, considerada um meio para inserção no mercado de trabalho. A maioria dos jovens da classe C – à qual se associa a nova classe média – estudou mais que os seus pais e acredita que um diploma universitário pode ajudá-los a melhorar de vida.
O avanço na renda da geração anterior alimentou expectativas mais elevadas nesses jovens, mas elas não foram concretizadas.
O desapontamento dos filhos da nova classe média, diante das promessas de um País melhor, foi o pano de fundo das manifestações de 2013. Segundo o Datafolha, naquele protesto de 13 de junho, em São Paulo, 76% dos participantes eram estudantes de diferentes regiões da cidade, com predomínio de grupos populares.
A nova classe média almeja prosperidade e melhor padrão de vida, deseja planejar o consumo e teme retrocessos. Além disso, demandam serviços públicos de melhor qualidade, não bastando o acesso a esses serviços.
A grande recessão do governo Dilma, em 2014-16, chacoalhou as classes médias, que sofreram as consequências do colapso da economia – aumento do desemprego e encolhimento da renda real –, alimentando o medo de perda de status quo. Nessas condições, não demonstraram descontentamento com o impeachment.
Outro movimento observado foi o maior interesse pelo empreendedorismo, ainda que muitas vezes por necessidade e operando na informalidade. São os pequenos negócios ou, mais recentemente, o trabalho para aplicativos, para complementar a renda ou para lidar com a falta de vagas de trabalho.
Nessa linha, mais um exemplo de mudança de crenças foi a grande aceitação das reformas trabalhistas – terceirização e flexibilização da CLT – no governo Temer. A CLT passou a ser vista pela sociedade como uma legislação engessada, que acaba dificultando a empregabilidade e o aumento da renda. Provavelmente, os efeitos da pandemia reforçaram essa avaliação.
No caso dos trabalhadores de aplicativos, eles prezam não apenas a renda obtida, mas a flexibilidade da jornada e o fato de não terem patrão, segundo pesquisa do Cebrap. Assim, a maioria dos entrevistados pretende continuar trabalhando com as plataformas. Ainda que anseiem por melhores condições e remunerações, esses trabalhadores desejam preservar a flexibilidade e a autonomia nas relações de trabalho. Não surpreende a divergência entre sindicalistas sobre a regulação do trabalho para aplicativos. Em parte, reflete o conflito entre o novo e o velho.
É importante acrescentar à equação de mudança de valores das classes médias o rápido crescimento dos evangélicos. Segundo o Datafolha, eles representavam 31% da população em 2019, se encaixando majoritariamente na classe C. O grupo contribui para formar uma nova classe média mais exigente, que quer prosperar, e não receber o Bolsa Família. Anseiam por menor desigualdade racial e social.
Temas típicos de uma agenda liberal deixam de ser tabu, enquanto lideranças políticas que a defendem ganham força no Congresso e nos estados. A privatização de estatais, por exemplo, está presente na agenda de vários governadores de partidos de oposição.
A revolta de consumidores ao anúncio do governo de que iria cobrar imposto de importação para encomendas de até US$ 50 entre pessoas físicas é mais um sinal de mudança. A pressão foi tanta que o governo recuou. Correta ou não a medida do governo, o fato é que o argumento de que a isenção prejudica a economia doméstica e, assim, o emprego, não convenceu os consumidores, que querem preços mais baixos.
Um relatório de 2012 de economistas do Banco Mundial mostra a maior preferência da classe média por políticas econômicas orientadas ao livre mercado, como menores tarifas ao comércio e liberalização do mercado de crédito. O protecionismo é demanda de grupos organizados do setor produtivo, e não das classes populares.
Os petistas, no entanto, mantêm no cerne de seu discurso a agenda econômica protecionista e de forte intervenção estatal – que alimenta o patrimonialismo – enquanto minimizam a necessidade de maior qualidade das políticas públicas e de estabilidade macroeconômica. Preservam também boa dose de paternalismo. Todos esses elementos, porém, não têm boa aderência aos valores das classes médias.
Enquanto isso, parcela importante da política, na base aliada e na oposição, já percebeu a mudança.
Zeina Latif é economista e autora do livro “Nós do Brasil: nossa herança e nossas escolhas”.