Esquecemos que os tribunais existem justamente para retirar o julgamento das ruas, onde a paixão impera. Ainda é valiosíssima a lição do gigante Evaristo de Moraes: “A multidão age como uma catapulta, tão depressa destrói, lamenta a destruição”.
O círculo vicioso da desinformação política, por seus profissionais, parece ter entendido isso mais do que qualquer erudito do Direito – e estabelecido uma nova arena de batalha para a polarização tacanha que está destruindo este País, desonrando o Direito e fazendo tremer a confiabilidade dos tribunais a partir do próprio Supremo Tribunal Federal.
Hoje a insatisfação com a Justiça virou pergunta feita por institutos de pesquisa, um fato que por si só revela a gravidade do que está acontecendo.
Os ataques reiterados vindos de um sistema de desinformação atingem o Judiciário sobretudo em razão do foro por prerrogativa de função (privilegiado), esse cadafalso que fez o Supremo cair nas malhas das paixões políticas e do debate futebolístico.
Com o Supremo aberto à pressão popular, aos interesses de ocasião e às paixões insufladas por falsas ou meias informações, chegou-se a ouvir de um de seus integrantes que “O Supremo deveria ouvir a voz das ruas”.
Não! Não! E não! E é fácil explicar.
Tomemos os acontecimentos criminais do País nos últimos 20 anos.
Setores desejavam que a desculpa de Lula (o “eu não sabia”) fosse alvo de algum testemunho que a contradissesse. Isso não aconteceu, e a culpa do Mensalão ficou nas costas de José Dirceu, o mais alto dos petistas alvejado por uma condenação.
Foram meses de julgamento, um País grudado nas telas da TV, e Joaquim Barbosa como o homem que redimiria o Brasil. Mas nada mudou.
Anos depois, o PT foi novamente alvo de acusações, e mais uma vez a Corte sofreu o peso político de tornar-se um influencer da República, calibrando sua jurisprudência aos “likes” com o controvertido vai e vem sobre a prisão em segunda instância – que, como se se sabe, serviu apenas ao anseio de prender Lula.
Era a famosa voz das ruas, insuflada pela desesperança e pelo surgimento de mais um herói que decairia à vala da mediocridade.
Depois, vieram as dezenas de casos e acordos anulados que mudariam o cenário político nacional e permitiriam que o atual Presidente pudesse novamente entrar no páreo eleitoral.
O cálculo político feito pelos Ministros, mesmo que não exista de fato, sedimentou-se no imaginário popular como certeza.
E por isso desagrada tanto essa sensação de que juízes – a caminho da Corte e percorrendo a Praça dos Três Poderes – parecem virar à esquerda (rumo ao Senado), e não à direita um pouco mais à frente, onde se localiza o Supremo.
Não se fala aqui das discussões sobre ativismo judicial, mas de cálculos políticos sobre decisões penais.
E são essas sensações que alimentaram os ataques do governo Bolsonaro às instituições.
Este se utilizou de todas as críticas feitas à Justiça pela esquerda durante o Mensalão e a Lava Jato para colocar a serviço do bolsonarismo um sentimento geral – o de insatisfação com a Justiça – como se o STF fosse sua única representação e o causador de todos os males de um sistema que, de fato, é merecedor de críticas. Como se o STF fosse todo o sistema jurídico brasileiro, e como se seus defeitos contaminassem todos os outros tribunais do País – uma ideia tão incorreta quanto injusta.
E chegamos, enfim, ao julgamento de agora, em que mais uma vez o Judiciário pagará um preço alto ao permitir que a política entre nos tribunais.
As novidades apenas agravaram o problema: interrogatórios sendo transmitidos ao vivo, expondo-se réus, gerando debates de não especialistas sobre a qualidade das defesas, e levando um País já profundamente polarizado a torcer apaixonadamente por um dos lados, justamente o contrário de uma das mais importantes funções do sistema de Justiça, que é levar as pessoas à razão.
Que venha à mente sempre o histórico de adaptação da jurisprudência nos casos criminais – tristemente para satisfazer anseios em casos específicos – como aconteceu nas eleições de 2018 e 2022.
Toda aquela paixão se mostrou pendular, invertendo o célebre verso de Ferreira Gullar: “Os linchadores de hoje são os fãs de amanhã”.
Isso é sintoma político, e não Justiça.
Em resumo: falhamos lá atrás – e continuamos falhando – ao vermos os juízes ora como heróis, ora como bandidos, e com a maldição da esquerda e da direita assombrando os tribunais.
Todo o sistema de Justiça paga o preço por essa outorga – ou karma constitucional – que recai sobre o STF por ser ele quem julga os poderosos decaídos, que sempre podem um dia voltar como santos.
Não será a hora de pensar em retirar do Supremo a outorga de julgar ações penais originárias e jogarmos o foro privilegiado para outros tribunais? Ou será melhor mantermos as coisas como estão até alcançarmos algum tipo de estabilização política? Por que os crimes dos políticos não podem ser julgados pelo júri, composto pelos próprios cidadãos que os elegem?
Por fim, um elemento crucial: será que os próprios Ministros querem que seus poderes sejam diminuídos?
Aceitariam perder o temor reverencial de serem os únicos julgadores dos poderosos do País?
Pensar o Judiciário é uma obrigação de todos os cidadãos que por ele são protegidos e por ele podem ser alvejados.
Em uma democracia tudo deve ser discutido. Com educação e respeito, mas sem tapar o sol com a peneira.
Thiago Anastácio é advogado criminalista.