A rejeição ao aumento do IOF desencadeou discursos de que chegara o momento de fazer “reformas estruturais”. Tudo foi colocado sobre a mesa: desindexação de despesas, revisão de mínimos constitucionais, redução de gastos tributários. Bastaram alguns dias de conversa para a solução caminhar para o de sempre: novos aumentos de tributos substituirão parte do IOF. Reformas na despesa pública ficam numa lista de boas intenções, para quando houver “ambiente político”.
Os Poderes ainda não perceberam o tamanho da enrascada em que estamos.
O Executivo trata a questão como se bastasse cumprir as metas do arcabouço. Não basta. Primeiro, porque elas são insuficientes para estancar o crescimento da dívida. Segundo, porque o próprio Executivo já encontrou mecanismos de gastar por fora, contornando o arcabouço.
No Legislativo, abundam os discursos a favor da responsabilidade fiscal, ao mesmo tempo em que se turbinam emendas parlamentares e benefícios fiscais de empresas amigas. O Judiciário acelera salários e penduricalhos, olimpicamente alheio à realidade nacional.
SPEND AND TAX
Não estamos em uma crise circunstancial, que requeira um ajuste marginal de R$ 20 ou R$ 30 bilhões. Estamos vendo naufragar o modelo criado após a redemocratização, quando se estabeleceu um modelo de “spend and tax”, ou seja, gasta-se primeiro, e depois corre-se atrás da receita para fechar a conta.
Em 1991, a despesa primária do Governo Central era de 11% do PIB. Em 2025, deve fechar em 19,5%: um aumento de 77% como proporção da renda nacional. Já a receita tributária subiu de 11,9% para 18,2%.
O problema dos regimes de “spend and tax” é que chega um momento em que os contribuintes começam a resistir a novos aumentos de impostos, enquanto a despesa continua a crescer automaticamente.
Em 2007, tivemos um primeiro sinal, com a rejeição à renovação da CPMF. Mas eram tempos de boom de commodities, e o ciclo positivo ajudou a fechar a conta. Porém, a partir de 2014, entramos em uma década de déficit crônico, com a dívida disparando. Simplesmente não é possível continuar vivendo assim para sempre.
Já ficou claro que não adianta correr atrás de mais impostos para cobrir despesas crescentes. Mas continuamos insistindo na fórmula.
O primeiro desafio é fazer a despesa crescer mais devagar. A resistência política surge com a afirmação de que isso significaria privar os mais pobres de benefícios sociais.
É verdade que na última década demos passos largos no atendimento aos mais pobres, com a criação e expansão do SUS, a universalização da educação e os diversos programas de transferência de renda.
Mas também é verdade que muitos programas são hoje anacrônicos, mal desenhados e custam caro, como o Abono Salarial ou o Seguro Defeso. Outros foram em parte capturados pela classe média, como no caso da judicialização do BPC.
Há, também, descontrole administrativo, como na disparada da concessão de auxílios doença, em que a pura e simples fraude acaba assumindo tons de ampliação de direitos.
Corporações passaram a se apropriar das verbas direcionadas para fins nobres, como ocorre na educação, que teve seu financiamento multiplicado sem o correspondente aumento de qualidade.
Há iniciativas populistas e insustentáveis, como o crescimento real permanente do salário-mínimo ou a sobreposição de benefícios a idosos, concedidos independentemente da renda do indivíduo.
A aposentadoria rural, importante instrumento de proteção a trabalhadores informais e de rotina desgastante, tem brechas para fraudes e ganhos espúrios de sindicatos rurais.
Teorias ultrapassadas ou mal aplicadas de desenvolvimento regional, descentralização fiscal e de industrialização por substituição de importações dão guarida a subsídios e privilégios caros e ineficientes.
Pelo lado da receita, quem tem força política cava a sua isenção, de modo que ao mesmo tempo em que a carga tributária média é alta, há grupos que pagam pouco imposto.
NÃO É FÁCIL MUDAR
As raízes deste modelo disfuncional estão na nossa economia política e nas instituições que construímos.
Temos um sistema eleitoral em que os Presidentes da República são eleitos sem maioria no Congresso, ao mesmo tempo em que os congressistas têm incentivos a expandir o gasto como melhor estratégia para obter reeleição. Logo, o aumento de gastos e as distribuições de cargos entram na pauta sempre que o Executivo precisa formar maioria para aprovar algum projeto.
Temos um federalismo não-cooperativo, em que estados e municípios têm força política para extrair crescentes transferências federais e obter renegociações de dívidas.
Nossa alta desigualdade de renda e riqueza produziu uma sociedade de baixa coesão social, em que as pessoas não se veem no mesmo barco. Cada grupo tenta extrair o máximo que pode do Estado, pagando o mínimo em tributos.
A inércia também tem peso: decisões ruins do passado sobrevivem por décadas, como a má distribuição de recursos de rendas de petróleo ou a sobrevida de estatais sem justificativa para existir.
Instituições e história política não são facilmente transformadas, de modo que é preciso construir consenso a favor de reformas fiscais mesmo enfrentando incentivos adversos. Esperar uma redentora “reforma política” não parece ser a melhor opção para quem já está vendo a água bater na canela.
A perspectiva de uma crise nas dimensões da recessão de 2014-16, ou até mais grave, deveria mobilizar políticos que prezam por suas biografias e empresários que discordam do modelo de boquinha para uns e carga tributária alta para outros.
EVITANDO IMPASSES
A forma mais comum de criar impasse e bloquear ajuste fiscal é encontrar um vilão, de preferência não muito bem definido. Os benefícios tributários usualmente cumprem este papel: “por que vamos mudar a regra do salário mínimo, se há empresários ricos ganhando bilhões com benefícios tributários? Temos que cortar esses privilégios”.
Nesta sentença não se especifica qual benefício deveria ser cortado e qual empresa é privilegiada. Para manter a generalidade do discurso, propõe-se um corte linear dos benefícios, o que tem baixa viabilidade jurídica e prática.
Ademais, em um modelo de “spend and tax” o problema original está no crescimento da despesa. Tentar resolver a questão cortando benefícios tributários equivale a aceitar tributação sempre crescente. Dados do FMI, comparáveis internacionalmente, mostram uma receita pública dos três níveis de governo no Brasil em 39% do PIB em 2024, muito acima da média da América Latina (29%) e da média dos emergentes (27%).
Não parece lógico usar o corte de benefícios tributários para financiar a marcha da insensatez dos gastos.
Uma estratégia mais eficaz seria separar o problema em duas partes. Na primeira, adota-se a difícil agenda de revisão das regras de indexação de despesas, de gastos mínimos, emendas parlamentares, extinção de programas etc. É daí que virá a estabilização fiscal: o fim do “spend and tax” por meio do controle do “spend”.
A segunda parte da estratégia seria a revogação de benefícios fiscais específicos – com o compromisso de que todo o ganho de arrecadação daí decorrente seja revertido para os contribuintes em geral, por meio da redução das alíquotas da CBS e do IBS, recém-criados pela reforma tributária.
Esta seria uma forma de engajar todos os contribuintes na pressão pela redução dos benefícios tributários e, ao mesmo tempo, garantir modicidade da carga tributária total, o que ajudaria a desmontar o modelo de “spend and tax”.
Marcos Mendes é doutor em economia e pesquisador associado do Insper.