“Queima o que adoraste e adora o que queimaste”. Com esta metáfora, São Remy batizou Clóvis, o primeiro rei dos Francos convertido ao catolicismo, em 496 d.C. A partir daquele momento, o monarca abandona suas crenças e atitudes e adota novas: rejeita os ídolos pagãos e passa a venerar o deus católico.
O Brasil tem diversos problemas graves, mas somente uma crise aguda: a da criminalidade e violência.
Desde a redemocratização, nos anos 1980, a criminalidade e a violência gradativamente tomaram de assalto o País, que se tornou um teatro dos absurdos da impunidade e um palco de violência urbana atroz sem igual no mundo de hoje.
As crenças e atitudes que nos trouxeram até esta situação dramática não nos farão sair dela. Se desejamos mudar a realidade da segurança pública, precisamos queimar ideias que adorávamos e adorar novas ideias.
Em fevereiro deste ano, neste mesmo Brazil Journal, escrevi sobre a inadiável necessidade de fazermos um Plano Real para segurança pública. Ao final, provoquei: “Com um plano concreto de longo prazo, que jamais tivemos, e uma ação enérgica e persistente (em vez de clichês e demagogia), podemos sim transformar a realidade da segurança pública e ainda elevar quem o fizer ao posto de líder mais bem avaliado do mundo. Quem se habilita?”
Nenhum dos presidentes da república que tivemos até hoje se habilitou. Fernando Henrique Cardoso, ao deixar o governo em fins de 2002, ao menos fez uma mea culpa. Lamentou que a segurança pública — um problema crescente para o brasileiro já naquele tempo — havia sido uma área em que não conseguiu deixar contribuições relevantes, e que este seria um dos maiores desafios do próximo governo.
Em março deste ano, João Santana, marqueteiro da reeleição de Lula em 2006 e das duas eleições de Dilma, falou numa entrevista sobre o porquê da esquerda negligenciar tanto o tema da segurança pública: “(…) isso sempre foi uma opção. Lula e Dilma nunca admitiram a atuação do governo federal nesse setor. Sempre usaram o escudo de que essa era uma responsabilidade dos estados.”
Não é mais uma opção.
Ninguém tolera mais a violência, especialmente os mais pobres, que são suas maiores vítimas. Enquanto os mais privilegiados buscam refúgio na segurança privada e nos carros blindados, os mais humildes estão totalmente expostos a uma violência brutal e devastadora.
Grandes homens públicos crescem com a ocasião, agem e assumem responsabilidades. Os pequenos se omitem e empurram com a barriga.
O texto constitucional diz que a responsabilidade da segurança pública é “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos” — inclusive da União — e faz um mapeamento raso de atribuições, o que permite este covarde jogo de empurra de competências entre os três níveis de governo e um consequente vácuo de responsabilidade sobre o que é hoje o maior problema do Brasil.
Um lembrete: a Constituição destinou à Polícia Federal a repressão ao tráfico de drogas e ao contrabando – de armas, inclusive. Cabe também à Polícia Federal apurar “infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei”.
Não estaria a União se omitindo em relação às suas competências constitucionais? É óbvio que sim.
Até os ipês de Brasília sabem que não haverá solução sem a liderança e orquestração do governo federal – mas este, com o aval do STF, se esconde e foge do tema segurança pública como o proverbial diabo da cruz.
Quando se mexe, diante do clamor popular, dá passos de formiga e sem vontade. Não adianta enviar textos tímidos e confusos ao Congresso e lavar as mãos. A vida das pessoas não melhora quando projetos são protocolados.
Nem com propaganda vazia. Há dois meses o governo apelidou de “Plano Real da Segurança” um projeto de lei antifacção que trazia mudanças tímidas, e não o conjunto de mudanças transformacionais de que precisamos.
É necessária uma grande concertação nacional, um esforço de Estado, com todo o seu peso, para transformar a segurança pública por meio de um planejamento de longo prazo envolvendo os três níveis de governo e os três Poderes.
Precisamos deixar de ser um paraíso da impunidade, marcado por casos tão absurdos que desafiam a lógica.
Na maioria absoluta das democracias, a execução da pena começa após uma decisão colegiada. No Brasil, porém, mesmo a segunda instância — a última a reexaminar fatos e provas — não é suficiente. O STJ e o STF só analisam questões de direito, não revisitam provas, e suas taxas de reversão são ínfimas, por volta de 2%.
Este desenho incentiva recursos meramente protelatórios, usados para empurrar processos até a prescrição e a impunidade.
Estamos na contramão do mundo e contrariando o bom senso. Tratamos todas as instâncias como se fossem falhas – até que uma sobrecarregada “quarta instância”, em Brasília, confirme a prisão de um indivíduo — em meio a dezenas de milhares de casos com impacto nacional.
E ainda há a porta giratória da Justiça penal e os exageros na progressão de penas. Não faltam oportunidades de avanço na agenda da segurança.
Quando o governo quer, ele faz; os votos no Congresso aparecem.
Em cada um de seus dois primeiros mandatos, Lula aprovou 14 projetos de emenda constitucional. Por que não aprovaria emendas para resolver o mais grave de nossos problemas?
Somente a União tem todos os recursos de inteligência com os dados financeiros da Receita Federal, Banco Central e COAF, além da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e o controle das Forças Armadas.
Os estados também têm um grande trabalho a fazer, especialmente no aumento da capacidade investigativa e no fortalecimento das corregedorias de polícia.
São necessários inteligência, asfixia financeira e uma força desproporcionalmente superior – que só o governo federal pode oferecer – para impor e manter a paz nos territórios dominados, minimizando conflitos e mortes.
Hoje temos 4,9 milhões de pessoas no Rio de Janeiro e 28,5 milhões em todo o País (mais que a população inteira da Austrália) sob o jugo do crime organizado, de acordo com a pesquisa do Datafolha para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É um aumento de 5 milhões de pessoas em apenas um ano.
Muitos residem em estados paralelos, sob o terror. Se quem pratica este terror é um terrorista é um debate retórico-jurídico que pouco interessa a quem está submetido a ele.
As fronteiras são claramente definidas por barricadas que subjugam, humilham e apavoram o cidadão que vive dentro dos seus limites. Elas demarcam o fim do estado democrático de direito do Brasil.
Dali em diante é o território do medo, da extorsão e da tortura. Não tem mais serviço público, não passa ônibus, não chega Uber, iFood, entrega nenhuma.
Qualquer desavisado que tente entrar nestes estados paralelos sem autorização é sumariamente fuzilado por uma milícia portando armas de guerra, treinada e sempre pronta para o combate.
Há imposto sobre tudo: “taxa de ajuda”, ITBI e IPTU do crime – nada escapa, e a cobrança é na base da bala.
É um “estado paralelo empreendedor”, que vende produtos e serviços caros com exclusividade para embutir a extorsão. Não ouse comprar de outros: a pena determinada pelo tribunal local pode ser de morte.
O estado paralelo também pratica tortura largamente. Sim, o Brasil prometeu “tortura nunca mais” não faz muito tempo, mas ela segue sendo praticada – agora, contra pobres sem ideologia, pessoas que só querem viver suas vidas. Brasilia – tão politizada, tão amante da democracia – não ouve seus gritos.
Quando a polícia faz incursões nos estados paralelos — para cumprir uma decisão da Justiça, por exemplo — eles reagem com atos de terror. Incendeiam ônibus e fecham vias para atrapalhar a vida da polícia e dos cidadãos, e abrem fogo contra vias expressas movimentadas, matando gente inocente num sopro, uma bala na cabeça.
Eventualmente um líder destes estados paralelos é preso. Mas, isso não é um inconveniente: os presídios brasileiros funcionam como escritório para eles. Lá se reúnem e tomam decisões diárias sobre a condução dos negócios e se comunicam com o auxílio do melhor da tecnologia, sem nenhum constrangimento. (O Estado paga a hospedagem.)
Os territórios ocupados pelo crime só crescem, e o modelo criado no Rio de Janeiro já foi replicado em vários estados. As polícias estaduais são obrigadas a lutar sozinhas numa guerra para a qual os policiais não se alistaram e que não têm condições de vencer com seus recursos.
Espera-se que os policiais que patrulham nossas esquinas lidem com este problema, assim como ajudam senhoras a atravessar a rua.
A segurança é uma das necessidades mais elementares e a primeira razão de existir do Estado, e a população não aceita mais este nível de incompetência e negligência. Basta.
A omissão também é uma decisão política.
É hora do Governo Federal reconhecer erros, abandonar ideologias que nos trouxeram até aqui, abraçar novas ideias e cumprir o papel constitucional que é sua obrigação: liderar, coordenar e integrar o esforço para combater o crime organizado.
Ainda – e mais do que nunca – precisamos de um (verdadeiro) Plano Real para a segurança pública.
Guilherme Pacheco é empreendedor e investidor em tecnologia.











