O Governo Bolsonaro está colocando em risco a estabilidade econômica que — com a ajuda improvável da pandemia — garantiu até agora juros em baixa e Bolsa em alta.

10518 be40975c d3fb 0009 000b b457af136a4cCom os R$ 600 lubrificando a opinião pública e sua popularidade em alta, o Presidente está se sentindo com o tal histórico de atleta. Mas se os credores do Estado puxarem o tapete, a serotonina vira adrenalina: o juro sobe, e toda a fundação sobre a qual está construída a narrativa do “fim do rentismo” pode ruir.  Vai ser ruim pra todo mundo.

Se o mercado aceitou um gasto extra de R$ 500 bilhões acima do teto este ano, por que não aceitaria algo mais modesto, como uma expansão de R$ 40-50 bilhões acima do teto nos próximos dois anos, dada a necessidade de um apoio maior do setor público à recuperação da economia? 

Alguma flexibilidade parece razoável, mas as coisas precisam ser conversadas.  O País precisa ter clareza de onde está e para onde vai na questão fiscal.

Antes da pandemia, a trajetória do nosso ajuste fiscal já era muito gradual — gradualíssima. 

Para se ter uma ideia: quando o teto foi criado em 2016, técnicos do Governo estimavam que o País cresceria 2% a 2,5% ao ano na década seguinte. Mas entre 2017 e 2019, o PIB cresceu em média apenas 1% ao ano, e em 2020 cairá perto de 5%.  (Em outras palavras, só o crescimento abaixo do esperado já foi um vento contra, e deveria ser motivo de preocupação.)

Agora, de acordo com os últimos números do governo e do mercado, mesmo cumprindo o teto dos gastos nos próximos anos corremos o risco de o governo federal sair do vermelho (superávit primário) só no final do mandato do próximo presidente. 

Ou seja, depois de uma década de vigência do teto, o governo federal provavelmente vai conseguir apenas zerar o déficit primário, em vez de atingir o objetivo principal: colocar a dívida pública em clara trajetória de queda. 

Isso, se não mexerem no teto agora…

Antes da covid, a expectativa era de que o Governo Bolsonaro conseguiria reduzir ou estabilizar a dívida pública bruta por volta de 76% do PIB até o final de seu mandato. Mas com os gastos extras decorrentes da covid, ela deve terminar o ano próxima de 100% do PIB. 

Esse valor é excessivamente elevado para um país emergente. E, no caso do Brasil, como mais da metade da dívida depende da taxa de juros de curto prazo, qualquer desconfiança sobre a solidez das contas públicas transforma uma dívida alta em uma dívida insustentável. 

Quem acha que a liberalidade monetária dos EUA pode ser aplicada no Brasil deveria considerar o seguinte: os EUA emitem Treasuries de 10 anos a um yield de 0,6%. Como a inflação lá é de 1,6%, o juro real é negativo.  Ou seja, mesmo que a economia não cresça, a relação dívida/PIB cai. No Brasil, o Tesouro só consegue colocar a NTN-F (seu papel pré-fixado) de 10 anos a uma taxa superior a 7% ao ano. (A taxa só não é maior porque o Tesouro tem se financiado mais no curto prazo, com LFTs e LTNs de seis meses).

É neste contexto que se desenrola o debate sobre uma mudança do teto. 

O problema é que a narrativa anti-teto ganha corpo há pelo menos duas semanas, sem que o Planalto venha a público rebatê-la ou mesmo contextualizar de forma adequada o debate. (O Presidente tentou encerrar o assunto ontem à noite, depois que o estrago nas expectativas já estava feito.)

É possível alguma flexibilização pequena do teto dos gastos sem tornar o ajuste fiscal já gradual ainda mais gradual?  Não há resposta fácil. 

Para que uma mudança no teto — mesmo que pequena — não prejudicasse o ajuste fiscal já em curso, seria necessária alguma medida permanente do lado da arrecadação — como a revisão, por exemplo, de alguns regimes especiais de tributação. 

Ideias heterodoxas para qualquer mudança no teto podem ter efeitos mais negativos do que positivos. Já sabemos que onde passa um boi também passa a proverbial boiada. 

10245 37b3420e 04e1 0344 2363e7f00 4d8cc66386a9Desde a semana passada, os investidores já estão se preparando para uma eventual mudança no teto: a curva de juros abriu sem cerimônia e continua pressionada. O mercado está colocando no preço que o risco de não cumprir o teto aumentou — não apenas em 2020 (o que já era dado), mas também em 2021 e 2022. 

O que fazer? Se o Brasil quiser um ajuste fiscal sem novo aumento da carga tributária — que mesmo com o teto, talvez ainda seja necessário — teremos que fazer um esforço como sociedade para respeitar o teto e insistir em mudanças no crescimento da despesa obrigatória. (Convém lembrar que o aumento do funcionalismo está liberado para 2022, ano eleitoral.)

Nesta hora, cabe ao Ministro Paulo Guedes articular a mensagem e negociar o apoio da sociedade e do mercado, mas o ministro — sempre cativante nos diagnósticos — tem ficado a reboque dos acontecimentos. 

Olhando a coisa friamente, o contexto político ao redor de Paulo Guedes mudou com a pandemia. Seu chefe está adorando a popularidade que os cheques de R$ 600 compraram para um governo que, não fosse por isso, estaria moribundo nas pesquisas.  

É natural que um presidente — ainda mais um que fez sua carreira no populismo — queira, como disse ontem o próprio PG, “inaugurar pontes.”  Mas cabe ao Ministro (e à ala política com assento no Planalto) escolher as batalhas, encontrar o tradeoff adequado dentro do Orçamento e negociar com o Congresso.

PG ajudaria muito se acelerasse a reforma tributária e articulasse uma mensagem de solvência do Estado brasileiro para o médio e longo prazo. Promessas mais ousadas podem ficar para depois.