Os resgates financeiros – os bailouts – são tão antigos quanto controversos. Em geral, a discussão no âmbito da política pública gira em torno do “risco moral” e dos efeitos que um resgate terá sobre o comportamento futuro dos beneficiários.  

Nos EUA, a pergunta “Como ter a certeza de que bancos resgatados não tomarão ainda mais riscos no futuro?” embasou a criação da “Volker Rule,” que passou a reger e restringir a negociação de ativos de risco por parte dos bancos.  

O roteiro da discussão sobre os bailouts em 2008 centrou-se nos temas da culpa (“o desastre foi causado por riscos irrazoáveis assumidos?”) e incentivos (“como mitigar a tentação de tomar ainda mais riscos no futuro?”). 

Já a questão do que fazer (“resgatar ou não resgatar?”) era evidente: o colapso do sistema financeiro claramente mergulharia o mundo em uma depressão.
 
Na crise atual, temos uma situação oposta. A questão da culpa parece evidente – a nenhuma empresa ou setor pode ser imputada a responsabilidade pela covid-19. Infelizmente, no entanto, a questão do que fazer é menos óbvia agora do que em 2008. 

Boa parte das indústrias de transporte, entretenimento, hospitalidade, varejo, turismo e alimentação (para ficar em algumas das mais afetadas) enfrenta tempos duríssimos e clama por um resgate, mas não me parece óbvio que devamos fazê-lo de forma indiscriminada.
 
Um debate sobre o que fazer deveria partir de alguns princípios e premissas fundamentais:


Princípio 1. Aceitemos: estamos mais pobres 
 
Parte do discurso sobre os resgates a empresas tem sido o de restaurar o que foi perdido. Infelizmente, isso é impossível. Estamos todos mais pobres como consequência dessa catástrofe. 
 
Imagine o leitor que moramos em uma ilha, e que metade dela foi destruída por um tsunami. Não há política capaz de anular a destruição ou voltar no tempo. Cabe apenas discutir quais dos habitantes remanescentes repartirão a conta e quais são os itens a ser reparados. Nosso tsunami é a covid-19.  

Imaginemos um programa amplo de resgate às principais indústrias afetadas: restaurantes, agências de turismo, empresas de transporte, hotelaria, shoppings e companhias de eventos.  
 
Se todos passam a receber cheques periódicos até que a situação se normalize, estaríamos transferindo riqueza de quem e para quem a fim de preservar esses negócios?
 
De David Ricardo para cá, sabemos que as dívidas que o Tesouro emite para custear os resgates saem do bolso do contribuinte (mais impostos) ou dos credores (via calote ou inflação). Como os recursos são finitos e existe restrição fiscal (essa premissa não é mais consensual, mas foge à discussão desse artigo), um imposto explícito ou implícito (inflação) reconstrói “metade da ilha” cobrando a conta – às vezes de forma injusta e regressiva — de alguns dos habitantes da outra metade. 

A questão de como repartir os custos sociais dos resgates de forma socialmente justa nos leva ao próximo princípio.            

Princípio 2. Protegemos pessoas, sempre pessoas. O teste dos CPFs

A empresa – nos seus diferentes formatos – é um instituto criado pelo Direito para resolver o que é essencialmente um problema organizacional: o custo de coordenação dos recursos necessários para a produção econômica em escala muitas vezes é menor em um arranjo de longo prazo —  em que acionistas e empregados cooperam, cada um com determinados riscos e responsabilidades — do que na contratação cotidiana via mercado spot.  
 
Dito de outra forma, se a economia funciona bem, o valor dos ativos (em especial o capital intangível) congregados no que convencionamos chamar de empresa é muito superior ao dos ativos em separado – e por isso a destruição de empresas tem um custo real para a sociedade. 

Mas qual a dimensão desse custo? Como decidir que empresas salvar?  Se passarmos a ver a empresa como um feixe de relações jurídicas, uma técnica de organização para atividade econômica, então fica claro que seu resgate terá implicações para acionistas, credores, trabalhadores e consumidores. Todos com CPFs. E como vimos acima, esse resgate será tipicamente pago por contribuintes – via impostos maiores no futuro – todos também com CPFs. 

Visto desta perspectiva, cada resgate tem de ser justificado sob o filtro dos CPFs. Determinadas empresas trarão um custo maior à sociedade com seu desaparecimento do que sua manutenção — e portanto devem ser salvas. Outras, infelizmente, não se enquadram nessa hipótese. Nesse caso, faz muito mais sentido (econômico e moral) proteger os CPFs mais vulneráveis do que fazer um cheque para a pessoa jurídica.

Proteger empresas deveria ser visto como uma forma indireta de proteger pessoas e preservar ativos  que, operando em conjunto, valem mais do que vendidos  em separado, o que ocorreria em uma liquidação ou falência. O custo dessa proteção com recursos públicos tem que ser comparado com duas alternativas: transferir renda para as pessoas afetadas diretamente ou não fazer nada e deixar com que o mercado aloque os ativos “liberados” a novas companhias.  

Princípio 3. Insolvência e liquidez devem ser tratados de forma distinta  

Liquidez refere-se à habilidade da empresa de gerar caixa para pagar seus compromissos de curto prazo.  Se sua empresa é uma administradora de imóveis comerciais e por conta da covid-19 você parou de receber aluguéis, você tem um problema de liquidez, isto é, terá problemas para pagar suas contas. 
 
Mas se você tomou empréstimo nos bancos e financiou 90% das propriedades comerciais que aluga e os preços dos imóveis caem bruscamente, você tem um problema de solvência: seus passivos (o que você deve) valem mais do que seus ativos (o que você tem).  
 
Nesse caso, a solução clássica é (ou deveria ser) a reestruturação: os acionistas da empresa — aqueles que aportam capital de risco – ganham quando a companhia vai bem, e deveriam ser os primeiros a perder quando a companhia vai mal. No nosso exemplo, se seus inquilinos param de pagar aluguel mas não há dívida onerando os imóveis, você só precisa de uma linha de financiamento para manter suas contas em dia.  (Esse empréstimo de curto prazo será facilmente pago quando a situação se normalizar.)

Quando um resgate resolve um problema de liquidez, tipicamente salva-se a empresa e também os acionistas. Já quando o salvamento da companhia ataca um problema de solvência, o ideal é que a empresa seja resgatada, mas não seus acionistas. 
 
Vejam por exemplo um dos resgates corporativos de maior repercussão na crise financeira de 2008, o da AIG, uma das maiores seguradoras do mundo.

Para evitar a falência da seguradora, que teve prejuízos catastróficos na sua divisão de derivativos, o Tesouro americano lhe fez um empréstimo de emergência de US$ 85 bilhões em troca de cerca de 80% do capital da companhia. Depois de postar o maior prejuízo da história das companhias abertas no último trimestre de 2008  (US$ 61,7 bilhões de dólares) e ver o tamanho do resgate aumentar para espantosos US$ 182 bilhões, a AIG se recuperou. 
 
Em dezembro de 2012, o Tesouro vendeu suas últimas ações na companhia, realizando um “lucro” de US$ 22,7 bilhões ao final do processo. A companhia se recuperou, evitou-se uma catástrofe financeira e os contribuintes ao final saíram ilesos – tudo graças ao fato de que a reestruturação diluiu os acionistas originais.

No Brasil, temos vários desafios na implementação desse tipo de modelo. Primeiro, nossa lei é ineficiente – e os projetos de lei que tentam “adequar” a lei à crise da covid-19 distanciam ainda mais o que deveria ser um modelo de reestruturação rápida e eficiente do que teremos. Um dos principais projetos em discussão, o do Deputado Hugo Leal, permite a “reabertura dos planos de recuperação judicial” tornando a vida dos credores ainda mais insegura. 
 
Ao invés de atrair capital privado para os resgates empresariais, o projeto efetivamente garante que os financiadores fugirão das reestruturações como diabo da cruz. Precisamos de um sistema rápido — preferencialmente extrajudicial – que permita que credores públicos e privados que resgatam uma empresa fiquem com a maioria do retorno econômico resultante da sua recuperação.           

Princípio 4.  Efeitos de segunda ordem continuam sendo importantes

Aqui as coisas se complicam mais um pouco. É verdade que o argumento do moral hazard assume uma dimensão diferente nesta crise. 

Mesmo assim, vale refletir sobre o tema. Por exemplo, vamos a um setor que certamente será recipiente aqui no Brasil (como foi em diversas outras jurisdições) de ajuda estatal em algum formato – o de transporte aéreo. Me parece razoável assumir que o custo social de deixar nossa malha aérea se dissolver justifica uma análise criteriosa – respeitando o teste dos CPFs. 
 
A questão é: resgate em que formato?  A maioria das companhias aéreas tem pouquíssimos ativos: as aeronaves são alugadas, e os slots (as cobiçadas janelas de pouso e decolagem dos aeroportos) são bens públicos, autorizações que as companhias recebem para operar e que em tese podem ser transferidos a outros por ato do regulador (aliás, uma idéia ao governo: permitam que as companhias “ativem” os slots, apenas para fins de garantia em uma emissão puramente privada). 

Além disso, várias das companhias têm elevados índices de dívida financeira. Aqui, portanto, temos uma situação que se aproxima mais da insolvência do que da mera iliquidez. A julgar pelas notícias de jornal, os acionistas das companhias relutam em “aceitar” diluição de suas participações em troca do resgate. 

Para os que acham que os acionistas das companhias aéreas devem ser insulados dos prejuízos por conta da ausência de “culpa” – e que não haverá efeitos de segunda ordem associados a um resgate sem “dor”, vale conferir o que tem dito nas últimas semanas Michael O’Leary, o CEO da RyanAir, umas das principais lowcost da Europa.

A RyanAir entrou na pandemia com €4 bilhões de reservas. Além disso, o que é muito raro no setor, cerca de 77% da sua frota é própria. A companhia tem  330 aeronaves, sem qualquer ônus, e por conta de seu balanço acredita que consegue atravessar a crise sem um resgate clássico. O CEO está ameaçando ir à Justiça para litigar o formato das ajudas dadas aos seus principais concorrentes.  “Para além dos principais dispêndios nos próximos meses (salários), para que bilhões em ajuda estatal, se não para danificar e distorcer a concorrência pelos próximos cinco a dez anos?” O’Leary declarou a um jornal.  

Entre as preocupações: com o bailout, a oferta continuará artificialmente inflada. Os preços, subsidiados pela ajuda estatal, deixarão de “premiar” a prudência financeira de quem se preparou para um tempo de vacas magras e impedirão a consolidação natural do setor. No futuro, o incentivo a seguir uma estratégia de prudência financeira será ainda menor se empresas como a Ryanair não puderem se beneficiar de seus acertos. Moral hazard.           

Como investidor, sempre acreditei que os preços no mercado tem conteúdo informacional. Atualmente, os preços dos títulos de dívida das companhias mais afetadas pela crise do covid-19 não refletem apenas suas condições de liquidez ou solvência. 
 
No início de abril, o Fed anunciou que poderia comprar títulos de dívida abaixo do grau de investimento e mudou completamente o comportamento de preço dos bonds. 
 
Assim, a combinação da atuação dos bancos centrais nos mercados de crédito e a perspectiva de bailouts aos setores mais afetados acabam relfetidos em preços que parecem desafiar o bom senso. 
 
Logo depois do anúncio do Fed, cerca de US$ 32 bilhões foram emitidos em dívida high yield – incluindo US$ 500 milhões da AMC (a um custo de cerca 10% ao ano), uma das maiores cadeias de cinema do mundo que viu sua receita cair a zero e declarou — pasmem — que com os recursos da nova dívida duraria apenas até julho sem ter que reestruturar suas dívidas em recuperação judicial.
 
Esta crise vai acelerar transformações em curso na economia e na sociedade (streaming vs. TV a cabo, home-office vs. escritórios, reuniões à distância vs. viagens a negócio, telemedicina, educação à distância etc), mas o padrão de nossas intervenções complica o panorama e cria o risco de desperdício de recursos públicos – dinheiro vindo dos CPFs.

O Tesouro – isto é – o conjunto dos brasileiros — pode e deve arcar com o custo de proteção durante uma calamidade como a atual. Mas pensar com critério nos beneficiários dos nossos programas e no formato de nossas intervenções não é apenas um imperativo econômico. É um difícil exercício moral.

 

Daniel Goldberg é sócio-diretor da gestora de investimentos Farallon Latin America. Foi presidente do banco Morgan Stanley e Secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça.