No romance ‘O Sol Nasce Sempre’, de Ernest Hemingway, um banqueiro responde assim à pergunta sobre como havia quebrado: ‘gradually, and then suddenly.’
A frase sintetiza o momento do mercado bancário brasileiro com a proliferação das fintechs. Ainda estamos na fase do ‘gradualmente’ mas, em breve, olharemos para trás e veremos que a perda de share dos bancos em diversos serviços ocorreu ‘subitamente’.
Quem visita a China volta impressionado com a revolução na indústria financeira: pouco papel-moeda circula, e os pagamentos são quase todos feitos por celular. Quem tenta pagar um taxista com dinheiro em espécie arrisca ser maltratado. Dois aplicativos tem papel fundamental neste processo: WeChat Pay e Alipay.
O WeChat é o WhatsApp que deu certo na China. Em 2013, já tendo consolidado sua posição como serviço de mensagens, o aplicativo lançou um e-wallet, o WeChat Pay, um sistema simples e funcional de transferências e pagamentos baseados em códigos QR, tanto para pagamentos online como offline. O usuário vincula sua conta de banco ou cartão de débito ou crédito — que tem baixa penetração na China — ao aplicativo e, ao chegar a um estabelecimento comercial, escaneia seu código QR e está pago. (O WeChat pertence à Tencent, a terceira empresa de internet mais valiosa do mundo, com cerca de US$ 500 bilhões de valor de mercado.)
O Alibaba veio em seguida e introduziu o AliPay, a solução de pagamentos usada no Taobao, sua popular plataforma de comércio eletrônico. Ao mesmo tempo que os pagamentos por celular se popularizavam, o sistema se aprimorava e era incorporado por grandes redes de varejo, como McDonald’s e Starbucks.
Como consequência natural do dinheiro circular pelos aplicativos, apareceram novos usos e funcionalidades, como contratar um seguro ou tomar um empréstimo. Como os usuários e comerciantes também deixavam saldos nas suas contas, os aplicativos passaram a oferecer também aplicações financeiras, que tiveram altíssima aceitação: por que transferir o dinheiro disponível no seu e-wallet para um banco se você consome a mesma oferta de serviços financeiros com dois cliques no seu app de uso constante?
Em apenas quatro anos, o fundo mútuo Yu’e Bao, da Ant Financial — o braço financeiro do Alibaba — se tornou o maior do mundo, com US$ 266 bilhões em ativos ao final do primeiro trimestre, quase o dobro do segundo maior, do JP Morgan.
‘Gradually and then suddenly’, as fintechs revolucionaram o mercado chinês e se tornaram o ponto central da vida financeira dos consumidores, destronando os bancos tradicionais.
No Brasil, por muito tempo o Banco Central priorizou a consolidação da solidez do nosso mercado bancário. O fato de nos sentirmos à vontade para abrir contas em bancos de nome divertidos, sites coloridos e sem agência, mostra que essa estratégia foi bem sucedida. Agora, o Banco Central tem nas fintechs a oportunidade de atacar um efeito colateral daquele foco na solidez: um mercado extremamente concentrado, caro e lento para atualizar sua oferta de serviços.
O brasileiro se acostumou com a oferta limitada de produtos financeiros de seus bancos e a ter produtos ‘da casa’ empurrados goela abaixo a custos altos, muitas vezes como condicionante para a obtenção dos produtos realmente necessários. As empresas adquirentes ganharam, por muito tempo, as maiores intermediações do planeta, além de receitas acessórias como aluguel de máquinas de POS e uma exclusividade, na prática, na antecipação de recebíveis.
Com efeito, criou-se um generoso e duradouro ‘profit pool’ no setor financeiro, concentrado nas mãos dos suspeitos usuais. Com a ajuda de um arcabouço regulatório amigável que favoreça as melhores ideias, e não as maiores empresas, em poucos anos as fintechs vão redividir esse bolo.
Há poucas semanas, o Itaú lançou com estardalhaço — três anos depois dos Estados Unidos — o Apple Pay, e o Google adotou solução semelhante ainda sem o mesmo brilho. Num país que é um paraíso para fraudes de cartão, o Apple Pay é um oásis de segurança. Tecnicamente, o pagamento é feito através de um token, uma representação criptografada do cartão, o que evita que dados sensíveis transitem pela máquina do estabelecimento, impedindo fraudes como a clonagem.
Graças à grande expansão recente da adquirência no Brasil, muitos estabelecimentos já tem máquinas prontas para o padrão utilizado pelos pagamentos por celular, o NFC (near field communication). Para o usuário, a vantagem sobre o cartão é óbvia: mais rápido, sem fraude e com a conveniência de usar o aparelho que está consigo a todo momento. Com a infraestrutura pronta e oferecendo vantagens para todos os envolvidos — bancos, consumidores e estabelecimentos — o sistema deve decolar no Brasil.
Os bancos serão o impulsionador deste novo hábito mas, curiosamente, isso poderá ser um tiro no pé. Quando o brasileiro se acostumar a pagar com o celular, o caminho estará pavimentado para muitas fintechs. Por que pagar pelo celular somente com cartão do banco?
Em março deste ano, buscando estimular a concorrência, o Conselho Monetário Nacional aprovou a Resolução nº 4.649 que veda aos bancos a prática usual — que embarreira inovações no mercado — de limitar ou impedir o acesso a débitos autorizados pelo cliente em outras instituições. Quando estiver plenamente em vigor a partir de novembro, essa norma forçará os bancos a aceitar integrações que abrirão caminho para novas fintechs.
Na Índia, já está funcionando desde o início do ano a transferência de recursos via WhatsApp. O Banco Central indiano deu um importante passo ao criar a UPI (Unified Payments Interface) em 2016 e preparar o terreno para as inovações. Estão no caminho do chamado ‘open banking’, onde o cliente é o dono da sua informação e o banco abre sua plataforma para serviços de terceiros, permitindo o florescimento de novas soluções e negócios.
Ao abraçar essa ideia, o BC brasileiro pode mexer na placas tectônicas do mercado. Com um ambiente regulatório favorável às fintechs, o órgão regulador pode, de uma só vez, desconcentrar o mercado, melhorar os serviços aos consumidores, diminuir os custos e oxigenar nossa indústria financeira criando novos vencedores e perdedores.
Guilherme Pacheco é empreendedor e investidor em tecnologia.