PARIS — Adaptar uma obra-prima é, em muitos casos, pedir para se estressar.

Mesmo que o produto final não seja de todo ruim — como a série da Netflix inspirada no livro Cem Anos de Solidão (1967), de Gabriel Garcia Márquez — o original é uma sombra gigantesca que tende a absorver grande parte do brilho da releitura.

Por aqui, os boulangers têm desafiado a desconfiança dos franceses e tomado certas liberdades na releitura de um clássico da gastronomia local: o croissant. 

Obviamente nada tão grave quanto as atrocidades vistas no Brasil, como o “croissant” com recheio de estrogonofe. (ARGH!)

O que tem ocorrido aqui na França é uma busca maior por identidade no desenvolvimento dos produtos e das marcas, rejeitando o conforto da uniformidade e, naturalmente, buscando chamar a atenção dos glutões de todo o mundo que vêm a Paris.

Contra todos os prognósticos, a ousadia está compensando (para alguns deles).

Não é de hoje que a Cidade Luz é uma das capitais mundiais da gastronomia, com espaço para propostas tradicionais e contemporâneas.

A despeito disso, as boulangeries – que vendem pães, doces e viennoiseries (as massas folhadas com origem austríaca, como o croissant) – ainda servem a um propósito primordialmente prático para os parisienses. 

Precisam ter produtos de qualidade disponíveis o dia todo — com bons preços, sem filas e sem firulas.

Ou seja, os padeiros são ensinados a seguir um padrão-ouro para produzir em larga escala, muitas vezes deixando a criatividade de lado.

Obviamente não dá para cobrar inventividade de toda padaria, se não a cidade ia acabar sem pão. Mas algumas delas estão indo por esse caminho.

Comecemos com casos mais soft.

A Mamiche (9º e 10º arrondissements), rede de padarias descoladas fundada por Victoria Effantin and Cécile Khayat em 2017, tornou-se parada obrigatória para muitos jovens e tem filas constantes.

Mamiche

O grande diferencial da casa é seu processo artesanal, sem a utilização de máquinas.

Segundo as donas, a filosofia tem duas consequências: a disponibilidade de produtos varia conforme o dia, e cada fornada sai com um aspecto diferente. “Nossos alimentos podem ser feios às vezes, mas são bons.”

No caso do croissant, não usar uma laminadora automática no processo de introdução da manteiga na massa diminui muito as chances de padronização das fornadas, disse Salvador Lettieri, chef executivo de pâtisserie e boulangerie do Le Cordon Bleu em São Paulo, ao Brazil Journal.

Ainda assim, o guia Fooding afirmou, ao caracterizar a viennoiserie da Mamiche, que “manteiga mais manteiga é igual a felicidade”. A reportagem também foi feliz provando a pedida, estaladiça na entrada e incrivelmente amanteigada na saída.

Não muito longe dali, no 11º arrondissement, outra dupla é celebrada pela crítica com um croissant autoral.

Sébastien Bruno e Erwan Blanche trabalhavam juntos na famosa confeitaria Ladurée quando decidiram abrir a Utopie dez anos atrás. 

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Sua viennoiserie é única porque a massa cresce com fermento natural (levain, sourdough), o que, na degustação, evidencia um perfil de sabor diferente. 

A gordura da manteiga fica contida e a sensação de crocância se multiplica. O interior desfia sem dificuldade nas mãos. Para o New York Times, vale a visita.

Ok, até aqui nada digno de vestir um colete amarelo e colocar fogo em um carro, certo? Espere até ver as criações dos chefs Christophe Louie e François Perret. 

Disclaimer: Por não possuírem formato de meia-lua, os próximos folhados não podem ser chamados de croissants, me disse Luc Debove, diretor da École National Supérieure de Pâtisserie da França.

Christophe Louie, apelidado de rei do panetone em Paris, tem uma loja com seu nome no Marais (3º arrondissement) desde 2023. 

Ali, também vende viennoiseries de tamanho generoso e formato de tulipa — obtido com o cozimento da massa folhada em molde específico.

A pedida foi considerada uma das 15 melhores em toda a França pela equipe do Le Monde, dada sua aparência elegante e textura ultra-crocante. O que eu comi estava beeeem crocante nas pétalas, mas um pouco murcho na base. A textura interna também não agradou tanto.

Outro que quis reinventar o formato do croissant recentemente foi François Perret, chef de pâtisserie do Ritz Paris (1º arrondissement).

A história é parecida com a do chef sensação do TikTok, Cédric Grolet. Perret começou a cuidar dos doces do Ritz em 2015, foi eleito o melhor chef de confeitaria do mundo em 2019, e dois anos depois abriu uma loja anexa ao hotel, a Le Comptoir, onde faz releituras de clássicos.

O folhado da casa também é feito com molde, mas de formato fino e alongado. Segundo o confeiteiro, a configuração foi pensada para facilitar o mergulho da viennoiserie em líquidos e geléias. 

Na boca, a crocância e a manteiga estão lá, mas a massa é espessa, sem a leveza e os alvéolos (desenho que se assemelha a uma colmeia) característicos. Não por acaso, a invenção não chamou muita atenção da crítica, então foque nas madeleines se passar por lá.

Opções de croissant não faltam na cidade. Para quem, assim como eu, continuará procurando (sem pretensão de encontrar) o melhor de Paris, confira a dica de Lettieri, do Cordon Bleu. 

“Precisa ser crocante, formar alvéolos dentro e desfiar nas mãos, com um aroma sutil de manteiga e caramelização. A cor deve ser âmbar, homogênea e não remeter a gordura.”

Ritz Le Comptoir 1