À luz da JV entre a Boeing e a Embraer anunciada recentemente, uma pergunta importante vem à tona. Teria a Boeing comprado uma campeã nacional, motivo de orgulho para os brasileiros, ou uma empresa cuja posição na indústria vem se deteriorando e cuja realidade econômica não está contemplada nessa visão mais romântica? Antes de responder essa pergunta, vamos olhar o histórico da Embraer na indústria de aviação regional. 

Primeiramente, a Embraer é uma empresa de tremenda importância histórica, tendo ajudado na criação do segmento de aviação regional com o lançamento do Bandeirante, um avião turboélice de 19-21 lugares, que teve enorme sucesso no mercado americano. Depois do Bandeirante, outro sucesso foi o Brasília, nos anos 80. Depois disso, a Embraer entrou num longo período de declínio e erros estratégicos, que culminaram em sua privatização nos anos 90. Após uma forte injeção de capital pelos novos sócios, a empresa voltou às origens e novamente acertou na mosca com seu jato regional, o ERJ. Sonhando ainda mais alto, a Embraer concebeu o E-Jet, uma família de jatos regionais maiores, com capacidade de 70-140 passageiros.

Após o sucesso inicial dos E-Jets, a empresa se encontra hoje num período de entressafra. Sua carteira de produtos maduros começa a encolher, sem que os novos estejam em produção. A carteira de vendas de aviões comerciais não entregues, que chegou a ser de mais de 5 anos de receita nos bons tempos, hoje não passa de 1,5 ano de receita. Vendas declinantes, somadas à necessidade de vultosos investimentos em novos produtos, têm colocado bastante pressão sobre os resultados operacionais da empresa, que caíram de US$ 714 milhões em 2013 para US$ 329 milhões em 2017, uma queda de 53%. De acordo com a própria Embraer, serão necessários ainda investimentos da ordem de US$ 1,7 bilhão até 2021 para o lançamento de novos produtos no segmento comercial. Se considerarmos que o lucro líquido da empresa foi da ordem de US$ 260 milhões em 2017, imediatamente vemos o tamanho do esforço da empresa para renovar sua linha de produtos.

No entanto, esse volume de investimentos não é garantia de sucesso e representa um grande risco para a empresa. Vale notar que o ciclo de vida de produtos na aviação regional se provou bem mais curto que no segmento comercial onde a Boeing atua. Por exemplo, a demanda efetiva por jatos de 35-50 lugares, responsáveis pelo renascimento da empresa nos anos 2000, praticamente desapareceu após poucos anos de produção. Compare-se isso ao ciclo de produção do Boeing 737, em produção desde os anos 60, e vemos significativas diferenças nos negócios da Embraer e da Boeing.

Mas e aí? A Boeing pagou barato pela posição de mercado da Embraer? Para responder isso, vamos analisar algumas particularidades da indústria e o próprio valuation da Boeing em US GAAP (a contabilidade americana), que difere materialmente do IFRS (a contabilidade internacional), usado pela Embraer.

A média do guidance da Boeing leva a um EV/EBITDA 2018 de 15,4x para a empresa. Já o ponto médio do guidance em IFRS da Embraer leva a um valuation de 9,6x. Apesar do desconto aparente nesses múltiplos, existe mais por trás desses números. Em primeiro lugar, como mencionado anteriormente, a Boeing reporta seus lucros em US GAAP, enquanto a Embraer, mesmo tendo suas ações listadas em Nova York, fez a opção de reportar em IFRS. 

 
A principal diferença entre esses dois princípios contábeis é o tratamento dado aos investimentos no desenvolvimento de novos produtos, cruciais para uma empresa em fase de renovação de sua linha de produtos, como é o caso da Embraer. Em US GAAP, os investimentos em desenvolvimento são lançados como despesas no resultado, enquanto, em IFRS, esses investimentos são capitalizados, ou seja, são tratados como investimentos intangíveis e amortizados no resultado, com base no cronograma de vendas do novo produto.

No caso da Embraer, que vem investindo pesado em desenvolvimento, essa diferença de US GAAP para IFRS é significativa. Estimamos que o lucro operacional 2017 de US$ 329 milhões, reportado em IFRS, teria sido somente US$ 63 milhões em US GAAP.  Laranjas com laranjas, esses ajustes sobre o guidance da Embraer para 2018 mostrariam que a ação está negociando a um múltiplo EV/EBITDA 2018 bem maior: 15x. Assim, em linha com o valuation da Boeing.

Portanto, considerando a atual situação da Embraer e a necessidade da empresa de investir em sua linha de produtos, parece, à primeira vista, que o preço proposto pela Boeing é justo, especialmente considerando o valuation da empresa pré-transação.

 
O fato é que, com um ciclo de vida de produto tão curto, posição passada nesse mercado não garante sucesso futuro. Essa indústria é repleta de exemplos de fracassos como Fokker, SAAB e Dornier, que assim como a Embraer hoje, em algum momento tiveram bons produtos e um razoável posicionamento no mercado de aviões regionais. Isso ajuda a retratar o tamanho do desafio da Embraer em permanecer uma empresa independente.
 
Rodrigo Magela é sócio-gestor da Itaverá Investimentos. Começou a cobrir a Embraer em 1998 quando trabalhava no Banco Pactual.