A inaceitável lentidão no processo de vacinação brasileiro tem cobrado seu preço, tanto em vidas quanto na velocidade da retomada econômica.  A reduzida oferta de vacinas e o atraso na sua contratação já são fatos conhecidos, e não se trata de litigá-los aqui. Mas mesmo considerando-se a pouca disponibilidade de doses que temos hoje, o País poderia estar fazendo um trabalho muito mais eficaz na sistemática adotada para a aplicação das doses.

Todos gostaríamos que houvesse muito mais vacinas, mas atribuir a lentidão atual à falta de oferta é uma desculpa que não condiz com a realidade. A velocidade da vacinação precisa aumentar rapidamente — e para isso julgamos que os critérios das fases devem ser ajustados.

No gráfico abaixo, é possível observar a quantidade de doses disponibilizadas aos Estados e as doses aplicadas, acumuladas ao longo do tempo. As barras pretas mostram as entregas ao longo dos dias. O gráfico mostra que até maio as entregas eram esparsas e menos previsíveis, e ao longo do último mês se tornaram mais frequentes, regulares e maiores. Com efeito, a linha azul, acumulado de doses distribuídas, está subindo e se distanciando da linha verde, de doses aplicadas.

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A distância entre a linha azul e a verde são as doses disponibilizadas aos Estados e não aplicadas: é o estoque de doses, retratado no gráfico abaixo. A linha cinza traz o estoque dia a dia, que varia de acordo com as entregas e as aplicações. Do ponto de vista de política pública de saúde, o gestor encarregado de fazer uma programação para as próximas semanas de vacinação deveria usar alguma métrica mais certa; por isso, apresentamos também a média de duas semanas, que dá uma ideia melhor de quão confiável é a disponibilidade de vacinas.

A conclusão é a seguinte: nunca tivemos uma situação tão favorável do ponto de vista da disponibilidade de vacinas (o que não significa que é boa, mas é melhor do que jamais foi). Os estoques seguem subindo.

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Abaixo, o gráfico mais importante: ele mostra a velocidade de vacinação diária (pela média de 7 dias, em milhar, na escala da direita) e o estoque de vacinas (na escala da esquerda, a mesma média de 14 dias do gráfico acima). Claramente, até o fim de abril, o que limitava muito a velocidade de vacinação era a baixa disponibilidade de doses, com a composição muito concentrada na Coronavac, que precisa de uma 2ª dose num curto intervalo de tempo. Ainda assim, na última semana de abril chegamos a ter mais de 1 milhão/dia (na média de 7 dias).

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O que temos visto em maio é profundamente desanimador. A disponibilidade de doses praticamente dobrou, mas mesmo com menos risco e mais espaçamento entre a 1ª e a 2ª doses (12 semanas para AstraZeneca e Pfizer), o ritmo de vacinação caiu para cerca de 700 mil doses/dia. Isto representa uma queda de 32% do pico. A disponibilidade atual de vacinas seria suficiente para dobrar o ritmo atual de vacinação diária. Ter disponibilidade de vacinas e não aplicar é simplesmente inaceitável.

O que pode ter ocorrido para essa desaceleração? Pelo que temos observado, praticamente não há filas em um grande número de postos de vacinação nas captais. Ontem, havia vários postos em SP com oferta de Pfizer sem qualquer fila. Isso apenas reforça o argumento de que os critérios para a vacinação estão atrasando muito o ritmo, e precisam mudar urgentemente.

A principal mudança ocorrida de abril para maio foi a interrupção do processo de vacinação por idade para a vacinação por grupos com comorbidade. Entendemos que a vacinação por comorbidade é muito falha, precisa ser ajustada, e deve-se voltar a vacinar pelo critério da idade o mais rápido possível, mesmo que mantendo os portadores de comorbidade como prioritários.

As dificuldades da vacinação por comorbidade são várias: não se sabe exatamente o número de pessoas, e é provável que haja grande superestimação, haja vista que várias pessoas têm mais que uma comorbidade. Mesmo havendo a comorbidade, não necessariamente sua comprovação é fácil ou disponível, e a exigência de documentação pode evitar que pessoas procurem a vacinação. Por fim, pode ser que este grupo tenha menos aceitação à vacina do que os demais. Todos esses fatores são reais e tornam muito difícil a vacinação apenas por comorbidade. Pior: ainda abrem espaço para fraudes (a famosa “indústria de atestados médicos falsos”), que invertem toda a ordem da vacinação.

Há outras potenciais explicações para a queda do ritmo de vacinação: possivelmente os gestores estão segurando mais vacinas para a 2ª dose (com algum receio de não haver oferta no futuro), pode haver certo estigma ou preconceito com algum tipo específico de vacina (o que não parece tanto o caso, dados os postos vazios em SP, mesmo com a Pfizer). Neste caso, se há grupos de pessoas que não querem tomar as vacinas disponíveis, deve-se expandir o grupo prioritário de maneira que a escala de vacinação seja preenchida.

De todo modo, qualquer uma dessas explicações para a queda do ritmo nos parece inaceitável, e há uma maneira simples e fácil de acelerar novamente: voltar a adotar o critério incontroverso de idade — o mais simples e de fácil comprovação — e acelerar a permissão para que outros grupos prioritários possam se vacinar.

Alguns governos dizem que o calendário precisa ser conservador, dada a baixa previsibilidade da chegada de insumos. Acontece que ser conservador, neste caso, deveria ser sinônimo de adotar práticas menos arriscadas com a vida das pessoas. Em outras palavras: adotar uma estratégia inversa à que tem sido feita e acelerar o cronograma.

Pode até ser que isso gere filas nos postos num volume por vezes maior que a capacidade do sistema de atender, o que certamente levará frustração àqueles que eventualmente não forem atendidos rapidamente. Mas é muito mais conservador com a vida das pessoas do que deixar doses paradas em alguma geladeira, porque talvez alguma pessoa com capacidade de comprovar sua comorbidade venha a se apresentar (e encontrar postos vazios).

Já passou da hora de todas as instâncias envolvidas coordenarem seus esforços e reverem uma sistemática que claramente não está funcionando.

 

Daniel Leichsenring é economista-chefe da Verde Asset Management.