“Se uma pessoa é gay e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?” disse o Papa Francisco, o representante de Jesus na Terra.Levy Fidelix

Já Millôr Fernandes, o saudoso sumo sacerdote do ateísmo, ensinou: “Não se amplifica a voz do idiota.”

Estas duas ideias ajudam a discutir o papel da religião na vida do País, num momento em que o discurso populista-religioso faz desta campanha eleitoral um exemplo chocante de obscurantismo.

A falta de coragem dos principais candidatos para avançar no tema das liberdades individuais é de uma pusilanimidade pornográfica. Aécio Neves acha que a lei que criminaliza o aborto deve ser mantida como está. Marina Silva se diz vítima de um “erro da equipe de campanha” para suavizar a agenda de defesa de direitos de minorias (particularmente os LGBTs) em seu programa. Já Dilma Rousseff se mostra oportunisticamente a favor de criminalizar a homofobia — sua primeira menção ao tema depois de quatro anos driblando o assunto.

Como diria Dilma, “no que se refere” a liberdades individuais, os bastiões de cojones do País hoje são o PV (que vê o aborto como um caso saúde pública) e o PSOL (o único a ser propositivo sobre direitos LGBT).

Neste vácuo de liderança moral, surge a figura proto homo sapiens do candidato Levy Fidelix, nanico em vários sentidos, mas gigante ao exemplificar o quadro de escuridão em que vive parte do Brasil.

Ao responder a uma pergunta sobre “por que as pessoas que defendem a família se recusam a reconhecer como família pessoas do mesmo sexo”, Fidelix achou importante educar os eleitores: “Pelo que eu vi na vida, dois iguais não fazem filho, e digo mais, aparelho excretor não reproduz”.

Essa foi a parte cômica e caricata de sua intervenção. Em seguida, comparou homossexualidade com pedofilia — o equivalente a comparar heterossexualidade com estupro — e escolheu um caminho historicamente perigoso ao dizer: “Então, gente, vamos ter coragem, nós somos maioria, vamos enfrentar essa minoria. Vamos enfrentá-los.”

Bactéria política que se alimenta de um substrato de ignorância, Fidelix a decompõe em uma substância altamente nociva ao corpo social: o ódio contra minorias. Ele está longe de ser o primeiro político-bactéria a fazer essa fagocitose — vários pastores o precederam — e a única vacina contra eles é uma tríplice de educação, informação e detergente.

As opiniões sobre o direito da mulher ao aborto são várias — desde o ‘contra’ absoluto até o ‘a favor’ dependendo do número de meses de gestação. Da mesma forma, as opiniões sobre ‘direitos gays’ variam — geralmente de acordo com o nível de paranoia, escolaridade e insegurança sexual.

Mas ninguém precisa concordar com uma ‘agenda liberal’ para se questionar o seguinte: para onde vai um país onde as lideranças políticas renegam a ciência e se fiam na religião para decidir políticas públicas? Ou, no caso de Fidelix, que não pode ser chamado de ‘liderança’, para onde vai um país no qual pequenos partidos apelam à ignorância para conclamar ao ‘enfrentamento’ de minorias e jogar brasileiro contra brasileiro?

Basta ser uma pessoa laica — ou de bom senso — para se perguntar isso.

Para quem acha que Fidélix é tão irrelevante que não merece nem resposta, o exemplo histórico do partido nazista alemão deveria bastar.

Para quem se aborrece com a agenda de direitos LGBT e fala em ‘ditadura gay’, tente trocar a palavra ‘gay’ por ‘judeu’ no discurso de Fidelix e veja se sua conclamação ao ‘enfrentamento’ ainda parece irrelevante ou merece ser ignorada.

Para quem acha que palavras são vazias, basta acompanhar as estatísticas e os crimes de homofobia que envergonham o Brasil.

E para quem não entende por que um blog sobre mercado financeiro está falando deste assunto: Nem só de câmbio flutuante e metas de inflação vive a agenda econômica de um País. Ela também prospera com justiça e igualdade de tratamento. Além do mais, um investimento em tolerância e equidade nunca quebrou ninguém.

Há uma tendência na sociedade a relevar as palavras de Fidelix como bobagem. É a mesma preguiça cívica que produz nossa acomodação com os buracos na rua ou com a falta de médicos no hospital público. “É assim mesmo,” diz a voz que convida à paralisia. “Os políticos são assim.”  Em vez disso, o país que ano passado foi às ruas exigir mudanças deveria tentar ‘tolerância zero’.

O discurso do ódio é mais generalizado e mais socialmente aceito do que supõem os moradores do eixo Itaim-Leblon. Ainda nos anos 90, José Augusto Berbert, crítico de cinema no jornal A Tarde, da Bahia, escrevia no topo de sua coluna a singela epígrafe: “Mantenha Salvador limpa: mate uma bicha por dia.” A incitação só parou quando Caetano Veloso escreveu uma carta ao jornal dizendo que a Bahia não podia tolerar aquilo. A Tarde não publicou a carta, mas um jornal concorrente, sim. Berbert parou de publicar a frase, mas continuou escrevendo no jornal.

A neta de Berbert, num exemplo de que a humanidade tem jeito, pediu desculpas pela intolerância do avô.

Mas não é preciso voltar aos anos 90 para ver a intolerância em ação.  A fala de Fidelix vem da mesma matriz que produz os gritos de ‘macaco’ nos estádios.  Também é comum no interior do Brasil outra variação sobre o mesmo tema: “viado tem mais é que morrer!” Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia, diz que desconhece outro país do mundo onde haja uma frase “tão ostensivamente homofóbica, e o pior, que cumpre à risca tal sentença.”

Infelizmente, ao contrário do verso de Caymmi, a Bahia não tem um jeito que nenhuma terra tem.  No ano passado, o deputado federal Luis Carlos Heinze, do PP do avançado Estado do Rio Grande do Sul, disse durante uma audiência pública que “quilombolas, índios, gays e lésbicas” são “tudo o que não presta”.

A cultura do ódio gera resultados. Dados da Secretaria Nacional de Direitos Humanos mostram que os crimes com motivação homofóbica cresceram 47% em 2012 em relação ao ano anterior. Sessenta por cento destes crimes são contra jovens de 15 a 29 anos, e 70% dos crimes ocorrem dentro de casa. O Governo ainda não publicou os dados de 2013, mas adivinha o que vem por aí…

Os EUA foram fundados por gente muito religiosa que colocou no dólar a expressão “Em Deus nós confiamos.” Ainda assim conseguiram, ao longo de dois séculos, lapidar todo um aparelho institucional onde o Estado e a religião ficam separados pelo muro do bom senso, e ao abrigo da lei. Em outras palavras: é possível ser religioso sem ser calhorda. E é possível ser conservador e não se tornar uma figura odiosa.

O ovo da serpente tem que ser reconhecido e o discurso do ódio, chamado pelo nome — além de expelido pelo aparelho excretor das urnas.

PS: A coluna de hoje é uma homenagem às crianças, jovens e adolescentes que, sob a inspiração e o encorajamento de discursos como o de Levy Fidelix, hoje apanham em casa ou são rejeitados por suas famílias apenas por sua orientação sexual. Elas têm a coragem que falta aos políticos brasileiros.