Anteontem, no Estádio Mário Filho, depois da derrota do Fluminense e antes da vitória do Santos, o Carlinhos Niemeyer veio para mim, de braços abertos, aos berros. Ou por outra: antes dos berros, cochichou: “Nelson, preciso falar contigo.” Eu estava conversando com o Marcelo Soares de Moura, o Francisco Pedro do Couto e o Salim Simão. E se Niemeyer me arrancava do grupo, imaginei: devia ser um assunto confidencial.
O diabo é que, no bom Niemeyer, a confidência é um comício. Levou-me para um canto e começou a deblaterar contra um vil ato da censura. Vejamos o caso: o Canal 100 filmou flagrantes da noite de autógrafos do meu livro O óbvio ululante. Lá foi, para a censura, o belo jornal cinematográfico.
Um dos censores, com sua fina percepção para o obsceno, achou que O óbvio ululante devia ser um palavrão inédito. Um outro, mais erudito, insinuou a hipótese de “publicidade”. O certo é que cortaram o título do meu livro. Mas vejam vocês: ao mesmo tempo que se mutila um jornal brasileiro, a censura não tira uma vírgula de Atualidades Francesas, jornal estrangeiro, este sim, que faz, de fio a pavio, propaganda confessa, propaganda deslavada. Portanto, entendo que o ato da censura contra um livro brasileiro, um autor brasileiro, um produtor brasileiro, foi de uma límpida e, repito, de uma cristalina indignidade.)
Mais uma vez, vou falar da “ascensão dos idiotas”. É um assunto que me fascina. O idiota é a grande e obsessiva figura do século XX. Meses atrás, houve, como todos sabem, a nova “Revolução Francesa”. Por ora, o que me interessa é a “velha”, dos dantons, dos robespierres, das marias antonietas e dos napoleões.
Graças ao Dumas pai, eu e o José Lino Grünewald somos íntimos da primeira Revolução Francesa. A segunda, dos estudantes, tem um defeito indesculpável: falta-lhe sangue e, insisto, o sangue não jorra como a água dos tritões de chafariz. E, como não houve cabeças cortadas, nem o Terror, o mundo já bocejava no quarto ou quinto dia da baderna. Eu e o Grünewald diríamos, com base em Dumas pai, que a segunda Revolução Francesa não teve nada de Revolução Francesa. Outro amigo, o pintor Raul Brandão, dizia-me, na época: “Como é chata a greve.” Dava uma opinião pictórica. E, de fato, só tem valor plástico, a greve metralhada, com operários emborcados na sarjeta. Nada mais insípido do que a greve consentida, abençoada, unânime. Imaginem, imaginem: a própria polícia foi grevista também.
Podíamos sugerir ao público: “Não leiam as manchetes. Leiam o velho Dumas.” Faltou, sim, às manchetes o frêmito, a tensão, o horror das Memórias de um médico. Na “jovem revolução”, ninguém matou, ninguém morreu. A princípio, o que assustou o mundo foi o suspense, foi o mistério. Ninguém entendia que, de repente, a França parasse. Primeiro, os estudantes e depois, o resto. Nunca houve tamanha greve. Até os papadefuntos, até os coveiros cruzaram os braços. Ninguém morria por falta de quem o enterrasse.
E, então, fora da França, todo mundo fez a pergunta, sem lhe achar a resposta: “Por quê?” Nem as notícias, nem as interpretações explicavam nada e por uma razão muito simples: o inexplicável é inexplicável. Imaginou-se que os estudantes queriam o Poder, e que os operários também queriam o Poder. Eram milhares de estudantes e milhões de operários. Portanto, os jovens e os grevistas tinham o que se poderia chamar de onipotência numérica. Eram milhões, e eu e o Paulo de Castro imaginamos que a História lhes daria o Poder imediato e absoluto.
Engano. Os dez ou 12 milhões de franceses não queriam o Poder. Vocês entendem? Lá estava o Poder, diante deles, como um fruto próximo, fácil, indefeso. Bastava o gesto de colhê-lo. Eram milhões e ninguém se dispôs a tal gesto. E nem se sentia, ao menos, o vago, surdo, informulado desejo do Poder. Os estudantes viravam carros e arrancavam paralelepípedos; os operários sequestravam os gerentes e não os devolviam. Mas já no terceiro dia a “jovem revolução” corria o perigo de ser um movimento idiota. É certo que as greves assumiam uma dimensão de catástrofe. Mas também pode haver a catástrofe idiota.
Catástrofe idiota. Deixei escapar a palavra exata: idiota. Tenho escrito, com obsessiva monotonia, sobre o maior tema da nossa época. Falei, dez vezes, sobre a ascensão do idiota. No passado, eram os “melhores” que faziam os usos, os costumes, os valores, as ideias, os sentimentos etc. etc. Perguntará alguém: “E que fazia o idiota?” Resposta: fazia filhos.
Mas vejam: o idiota como tal se comportava. Sim, na rua, passava rente às paredes, gaguejante de humildade. Sabia-se idiota e estava ciente da própria inépcia. Só os “melhores” sentiam, pensavam, e só eles tinham as grandes esposas, as lindas amantes e “os mais belos interiores” para Manchete fotografar. E quando um deles morria, logo os idiotas tratavam de chorar, velar e florir o gênio.
E, de repente, tudo mudou. Após milênios de passividade abjeta, o idiota descobriu a própria superioridade numérica. Multidões, jamais concebidas, começaram a rosnar. Eram eles, os idiotas. Os “melhores” se juntaram em pequenas minorias, acuadas, batidas, apavoradas. O imbecil, que falava baixinho, passou a esbravejar; ele, que apenas fazia filhos, deu para pensar. Pela primeira vez, o idiota é artista plástico, é cientista, sociólogo, romancista, cineasta, dramaturgo, prêmio Nobel, sacerdote. Aprende, sabe, ensina.
Em nossa época, ninguém faz nada, ninguém é nada, sem o apoio dos cretinos de ambos os sexos. Sem esse apoio, o sujeito não existe, simplesmente não existe. E, para sobreviver, o intelectual, o santo ou o herói precisa de fingir-se idiota. O próprio líder deixou de ser uma seleção. Hoje, os cretinos exigem a liderança de outro cretino.
Eis o que eu queria dizer: o mundo custou a perceber o óbvio ululante, isto é, que a “jovem revolução” da França foi uma obra de idiotas. Eram milhões de sujeitos implicados no movimento. E não saiu um único e escasso líder; não ficou um nome, uma cara, um gesto. Aí está um dado patético. Não há nada mais impessoal do que o idiota e nada mais idiota do que a unanimidade. Os milhões da França exprimiam apenas a “onipotência numérica” dos imbecis.
O que mais espanta, em tudo isso, é o papel da inteligência. Sim, como age, como reage a inteligência. O homem comum pensa que o intelectual pensa. Ilusão. A inteligência não pensa mais. Vive a lamber as botas dos idiotas como uma cadelinha amestrada. Isso aqui, como lá fora. Nunca me esqueço de uma fotografia que saiu, em todas as primeiras páginas, durante a nova Revolução Francesa. Aparecia Jean-Paul Sartre ao lado dos grevistas. Estava, ali, fingindo-se de idiota para sobreviver.
Nelson Rodrigues publicou esta coluna em O Globo em 23 de novembro de 1968. Ela está no livro “O Reacionário”.