Sarah Wynn-Williams ocupou por quase sete anos um cargo-chave no Facebook, a atual Meta. Como diretora de políticas públicas, ela era responsável pelo relacionamento da empresa com os governos de alguns países, incluindo o Brasil – um mercado prioritário no plano de crescimento da companhia.
Agora, a ex-executiva – uma advogada da Nova Zelândia que havia trabalhado na Embaixada de seu país em Washington e na ONU antes de ingressar na Big Tech – acaba de publicar nos EUA um livro de memórias de seus tempos no Face.
Com bastidores pesados e denúncias de assédio envolvendo alguns dos principais executivos da companhia, Careless people: a cautionary tale of power, greed, and lost idealism virou um best-seller instantâneo.
Colaborou para seu sucesso a tentativa da Meta de impedir sua divulgação: a empresa recorreu a uma câmara de arbitragem para proibir a autora de dar entrevistas e promover o trabalho. O árbitro concordou – citando uma cláusula da rescisão de contrato com Wynn-Williams quando ela foi demitida da empresa, em 2017.
Mas o livro continua à venda. A editora Macmillan disse que ficou “horrorizada com a tática da Meta de silenciar” a autora. “O livro passou por um processo completo de edição. Continuamos comprometidos em publicar livros importantes como esse.”
Já a Meta disse que o livro é “uma mistura de alegações desatualizadas e relatadas anteriormente com falsas acusações sobre nossos executivos”. Afirmou ainda que a autora trabalha para “ativistas anti-Facebook” e que o livro é uma “mera continuação desse serviço.”
A autora, contudo, apresentou denúncias que estão sendo investigadas pela Securities and Exchange Commission, relatando possíveis violações regulatórias feitas pela empresa envolvendo seu plano de entrar no mercado da China 10 anos atrás.
Em um documento de 78 páginas, Wynn-Williams descreve como o Facebook estaria disposto a permitir que as autoridades do Partido Comunista tivessem acesso a todas as informações coletadas pela rede social e contribuir para a censura no país.
Segundo ela, a empresa teria inclusive se comprometido a fornecer aos chineses dados que ela havia informado a autoridades americanas e de outros países que seriam “impossíveis de ser obtidos.” Executivos da empresa teriam dado depoimentos “enganosos” ao Congresso dos EUA sobre este assunto.
A rede social acabou não ganhando a autorização dos chineses. Segue banida por Beijing até hoje.
Careless People é um depoimento pessoal, sujeito a imprecisões e aos vieses da autora – evidentemente frustrada com os anos na companhia e que saiu demitida por “desempenho insuficiente” depois que suas denúncias internas de assédio foram consideradas “sem fundamento.”
É uma obra típica de ex-funcionário ‘que sai atirando’ – e alguns ex-colegas da autora publicaram comentários nas redes sociais dizendo que há diversas informações incorretas, enquanto outros confirmaram a essência do conteúdo.
Mesmo com todas essas ressalvas, o livro traz relatos impressionantes de alguém que viveu por dentro o dia a dia e as discussões estratégicas de uma das empresas mais influentes do planeta – capaz de impactar eleições em todo o mundo.
A expressão ‘careless people’ usada no título vem de uma citação do clássico americano The Great Gatsby, de F. Scott Fitzgerald. “They were careless people, Tom and Daisy – they smashed up things and creatures and then retreated back […] and let other people clean up the mess they had made.”
Fica evidente para quem lê o livro que Tom e Daisy são uma referência a Mark Zuckerberg e sua ex-braço direito, Sheryl Sandberg – a chief operating officer da empresa até 2022.
“Careless people é sombriamente engraçado e genuinamente chocante: um retrato feio e detalhado de uma das empresas mais poderosas do mundo,” escreveu o New York Times sobre o livro. “O que Wynn-Williams revela sem dúvida desencadeará a ira de seus antigos chefes.”
Já o Financial Times disse que os relatos são “de cair o queixo.” (Nota: Wynn-William é casada com um editor do FT.)
No livro, a autora diz que decidiu tentar uma vaga no Facebook porque era uma usuária da plataforma e acreditava que ela poderia “transformar o mundo.” Contratada, ficou feliz pela “oportunidade de trabalhar na maior ferramenta política” da atualidade.
“Fiquei lá por sete anos e, se tivesse que resumir em uma frase, diria que começou como uma comédia esperançosa e terminou em escuridão e arrependimento,” escreve.
Segundo a autora, seu cotidiano como estrategista de relacionamento político envolvia “muito menos a aplicação de um capítulo de Maquiavel e muito mais assistir a um bando de garotos de 14 anos que receberam superpoderes e uma quantia absurda de dinheiro, enquanto viajam pelo mundo para descobrir o que o poder comprou e trouxe para eles.”
O Brasil, considerado um mercado estratégico para o Facebook, ocupou boa parte do tempo de Wynn-Williams. Seu período na companhia coincide quase todo com o Governo Dilma Rousseff.
Em uma das passagens, a autora relembra como estava em trabalho de parto, já no hospital, e abriu seu notebook para responder a um pedido de Sandberg, que havia pedido talking points para a reunião que teria com Dilma no Fórum de Davos em 2014.
Enquanto o marido e sua médica diziam para ela não enviar o email porque dar à luz a primeira filha é algo muito especial, ela dizia que Sardenberg não a perdoaria.
“Please let me push ‘send’,” ela disse, pedindo para enviar a mensagem antes que tirassem o computador de suas mãos.
“You should be pushing,” respondeu a médica. “But not send.”
Meses depois, em abril de 2015, Wynn-Williams conseguiu agendar um encontro de Zuckerberg com Dilma durante a Cúpula das Américas, no Panamá. Na pauta da reunião, o projeto do Facebook de levar a internet a milhões de pessoas ao redor do mundo.
À época, metade dos brasileiros não tinha conexão com a rede de computadores – um obstáculo para o avanço do Face no País. Na reunião, Dilma ganhou de presente um moletom de capuz do Face e o vestiu para tirar uma foto ao lado de Zuckerberg.
A possível parceria não prosperou. Dilma queria investimentos em infraestrutura de telecomunicação em regiões remotas, algo que estava fora do escopo do projeto do Facebook.
A autora fala também sobre a crise causada pela prisão no Brasil do vice-presidente para as Américas, em 2016, por não ter cumprido a ordem judicial de repassar à polícia uma troca de mensagens feitas por criminosos pelo WhatsApp. Ela ficou chocada com o pouco caso dos superiores e diz ter temido ser a próxima a acabar na cadeia.
Algumas das revelações potencialmente mais comprometedoras para a empresa dizem respeito a suas negociações com os líderes chineses, em 2015. No livro ela conta que o Face aceitou fazer o projeto de investimento em parceria com uma empresa local e teria se oferecido para treinar os chineses a desenvolver a infraestrutura da internet e terem mais capacidade de competir com grandes empresas americanas.
A empresa teria ainda aceitado armazenar todos os dados na China, mesmo tendo afirmado a outros países – como o Brasil – que isso seria tecnicamente impossível.
Wynn-Williams diz que a proposta aos chineses continha informações que a empresa não abre para nenhum outro país – “explicações detalhadas e precisas de como a tecnologia funciona, dos algoritmos, tagging de fotos e reconhecimento facial.”
“Todos os segredos comerciais que eu imaginei que nunca seriam revelados para ninguém de fora do Facebook,” escreve.
A Meta conseguiu a aprovação para algumas operações comerciais na China, mas suas redes sociais nunca foram liberadas no país. Ainda assim, esse é seu segundo maior mercado, atrás apenas dos EUA, porque as empresas chinesas compram anúncios em outros países.
O livro traz ainda bastidores de como os estrategistas de Donald Trump usaram a rede social para influenciar os eleitores na vitoriosa campanha de 2016 – e como a viralização de fake news e a compra de anúncios políticos renderam milhões e milhões para o Face.
“O Facebook recompensa candidatos outsiders que postam conteúdo inflamatório que gera engajamento,” diz ela. “Cobra menos por anúncios que sejam mais incendiários e alcancem mais pessoas. Trump usou nosso sistema da maneira que ele foi concebido para ser usado. Para mim, isso é incentivar e premiar o pior tipo de baixaria política.”
Depois da enxurrada de críticas, o Facebook decidiu criar um programa de checagem de informações – recentemente extinto, depois da nova vitória de Trump. Passando por crises seguidas de imagem e enfrentando uma série de investigações, em 2018 a empresa fez um rebranding e agora se chama Meta.